10 de dezembro de 2020
Uma coisa é manter o corpo mumificado de um faraó do Antigo Egito em uma caixa de vidro num museu, outra é empalhar o cadáver de um guerreiro africano e exibi-lo como um troféu junto com animais selvagens. Por incrível que pareça, há menos de vinte anos atrás, você poderia tê-lo visto no museu de História Natural Darder na cidade de Banyoles, perto de Barcelona, na Espanha.
O guerreiro tinha cerca de um metro e meio de altura, ligeiramente encurvado, ombro levantado, e portava uma lança em uma mão e um escudo na outra. As partes íntimas do corpo cor de carvão estava coberto por uma pequena tanga laranja enrolada em sua cintura.
A fama do guerreiro empalhado vem de suas andanças póstumas – que duraram mais de 170 anos – como as exibições em museus na França, Espanha e outros lugares da Europa. Gerações de pessoas ficaram boquiabertos visualizando o corpo seminu do nativo, que havia sido empalhado rudimentarmente por um taxidermista oportunista. Por essas e outras, esse bosquímano africado sem nome, exibido como um troféu, ficou conhecido apenas como “El Negro” ou “O Homem Negro”,
Acredita-se que El Negro tenha sido membro do grupo étnico Khoisan, que viveu e morreu em algum lugar da África do Sul em 1831. Jules e Édouard Verreaux, dois irmãos franceses, comerciantes de espécimes animais, chegaram na aldeia e souberam do pobre homem moribundo. O guerreiro mesmo sendo jovem ainda, estava tão fraco e exausto que não conseguia mais perseguir animais, tendo sua subsistência ameaçada. Era questão de horas ou dias para que ele morresse.
Os dois europeus aguardaram alguns dias e presenciaram sua morte. Viram no cadáver do africano, uma forma de ganhar dinheiro. Anos mais tarde, Jules relatou que ambos compareceram ao funeral do infeliz, depois esperaram que anoitecesse para violar seu túmulo e retirar o cadáver. Do corpo, eles retiraram a pele, o crânio e os principais ossos do nativo; deixando o restos para os chacais.
Jules Verreaux pretendia enviar o corpo para a França e assim preparou o cadáver do guerreiro africano usando arame como espinha dorsal, tábuas de madeira como estrutura de sustentação de braços e pernas e jornal e gesso, como material de enchimento. Em seguida, ele despachou o corpo para a Europa junto com um lote de animais taxidermizados em caixotes. Pouco tempo depois, o corpo do africano apareceu exibido em um showroom da Rue Saint Fiacre, nº3, em Paris.
Jules Verreaux virou quase um herói, um Indiana Jones daquela época e recebeu muitos elogios por seu esforço e por sua coragem em desconsiderar os perigos para sua própria vida e roubar o corpo de um verdadeiro guerreiro africano, que muitos europeus apenas sabiam de sua existência em jornais e revistas.
Um repórter do jornal Le Constitutionnel observou que o indivíduo do povo Bechuana atraia mais atenção do que girafas, hienas ou avestruzes, sendo um espécime muito incomum. “Ele é pequeno em postura, tinha pele preta e sua cabeça estava coberta por uma lã de cabelos crespos”, descrevendo o nativo em artigo do jornal.
Em 1872, o nativo foi exibido na feira Palais d’Industrie em Paris, e em algum momento entre 1880 e 1888 ele foi vendido para um cirurgião veterinário e colecionador espanhol chamado Francisco Darder, que o apresentou na exposição mundial em Barcelona em 1888 – não pessoalmente, mas em um catálogo como “O Botsuano“, num desenho em que ele é visto usando uma ráfia (uma folha de palmeira) e segurando uma lança e um escudo.
Em 1916, ele foi adquirido pelo Museu Darder em Banyoles, uma pequena cidade no sopé dos Pirineus. Os curadores do museu aplicaram uma camada de graxa de sapato sobre sua pele para fazê-lo parecer mais negro e o montaram em um pedestal incorretamente rotulado como o “Bosquímano do Kalahari“. Também substituíram a folha de palmeira por uma tanga laranja menos reveladora. A essa altura, suas origens já haviam sido esquecidas e ele gradualmente passou a ser conhecido como “El Negro”.
De pé em sua “caixa” de exibição, levemente curvado e com um olhar penetrante, El Negro incorporava de uma forma mais pungente e angustiante, os aspectos mais obscuros do passado colonial europeu. Ele confrontava visitantes de frente com teorias de “racismo científico” – a classificação das pessoas como inferiores ou superiores baseado em medidas de crânio e outros pressupostos falsos.
Conforme o século 20 avançava, El Negro se tornou mais um anacronismo. Não só houve aumento de culpa e consciência sobre o fato de que seu corpo e túmulo haviam sido violados, como ficou clara a ideia de que ele, como um artefato europeu do século 19, refletia ideias que haviam se tornado universalmente insustentáveis.
Durante anos, “El Negro” compartilhou a “Sala dos Mamíferos” do museu com vários macacos taxidermizados e o esqueleto de um gorila. Poucos pareciam ter se incomodado com o fato de a esquisitice empalhada já ter sido um homem de verdade que tinha um nome, uma identidade e uma vida.
Tudo começou a mudar em 1992, quando um médico espanhol de origem haitiana, Alphonse Arcelin sugeriu, em uma carta para o jornal El País, que El Negro deveria ser retirado do museu. Os Jogos Olímpicos aconteceriam em Barcelona naquele ano e o lago em Banyoles foi escolhido para ser um dos locais de competição aquática. Com certeza, escreveu Arcelin, atletas e espectadores que visitassem o museu local poderiam se sentir ofendidos com a visão de um homem negro empalhado.
O pedido da Arcelin recebeu ampla publicidade, atraindo a atenção e o apoio de muitas pessoas proeminentes em todo o mundo, incluindo o pastor americano Jesse Jackson e o jogador de basquete Magic Johnson. O ganês Kofi Annan, então secretário-geral assistente da ONU, condenou a exibição dizendo que ela era “repulsiva” e “barbaramente insensível“. iniciando um movimento que acabaria resultando na devolução dos restos mortais de El Negro ao Botswana.
O povo catalão foi contra a devolução do indígena, considerando-o “um tesouro nacional” e relutaram em entregá-lo. Para mostrar seu amor e apoio, os moradores locais usaram camisetas com slogans como “Mantenha El Negro” e “Banyoles ama você, El Negro“. Na Páscoa, as crianças foram presenteadas com reproduções em chocolate em miniatura dele.
O prefeito defendeu a exibição. “Temos múmias e crânios e até peles humanas no museu“, disse ele. “Qual é a diferença entre essas coisas e um africano empalhado?“
O curador do museu também concordou. “El Negro é nossa propriedade. É nosso negócio e de ninguém mais. Os direitos humanos só se aplicam a pessoas vivas, não aos mortos. Este é um museu que mostra diferentes raças e culturas com o devido respeito. É uma exposição racial, e racismo ou a morbidez pode ser uma atitude pessoal dos visitantes que o museu não fomenta … [Então] falar de racismo é absurdo.“
Foi só em março de 1997 que o museu sucumbiu à crescente pressão internacional e retirou o africano de exibição. Ele foi armazenado e, três anos depois, em 2000, começou sua jornada final de volta para casa.
Seguindo recomendações da Organização para a Unidade da África, a Espanha concordou em repatriar os restos humanos para Botswana para um novo enterro cerimonial em solo africano. O primeiro passo da repatriação foi uma viagem à noite em um caminhão para Madri.
Uma vez na capital, seu corpo empalhado foi “desmontado” e desprovido de tudo de “não humano” que havia sido adicionado, como seus olhos de vidro. El Negro foi “desfeito”, como se tudo o que Jules Verraux havia feito para conservar seu corpo por 170 anos tivesse sido rebobinado.
Sua pele, porém, estava dura e rachou. Por causa disso e por causa do tratamento com polimento de sapato, eles decidiram mantê-la na Espanha. De acordo com uma reportagem de jornal, ela foi deixada no Museu De Antropologia de Madri.
Assim, o caixão que ia para Botswana tinha apenas o crânio, além de alguns ossos de braços e pernas. Os restos do guerreiro de Botswana ficaram expostos na capital Gaborone, onde cerca de dez mil pessoas passaram por ele para prestar as últimas homenagens. No dia seguinte, 5 de outubro de 2000, ele foi enterrado em uma área cercada no parque público Tsholofelo, na cidade de Gaborone.
A placa de metal em sua tumba diz: “El Negro. Morreu em 1830. Filho da África. Trazido para a Europa morto. Levado de volta a solo africano em outubro de 2000.”
Depois disso, o túmulo foi esquecido por muitos anos e o gramado ao redor do túmulo foi usado como campo de futebol. Mais recentemente, porém, o governo de Botswana restaurou o local, transformou-o em uma área de visitação e colocou várias placas explicando a importância dele. Mas, em 2016, ainda não se sabia quem esse “filho da África” era, qual era seu nome ou exatamente de onde ele veio.
Uma autópsia feita em um hospital catalão em 1995, no entanto, trouxe algumas informações. O homem que se tornou mundialmente conhecido como El Negro viveu cerca de 27 anos. Ele tinha cerca de 1,4 metros e provavelmente morreu de pneumonia.”
Mas El Negro não foi o único caso de “artefato humano” exposto em museus ocidentais. No Museu Anatômico de Modena ainda há duas pessoas negras “em exibição”. Um etíope, que era conhecido pelo nome de Peter Lerpi, e que trabalhava para os duques de Modena como músico. Morreu de pneumonia aos 28 anos, em 24 de outubro de 1831.
Seu corpo embalsamado foi exposto na época pelo professor Domenico Alfonso Bignardi. No mesmo museu também abriga uma mulher núbia em uma caixa de vidro, que morreu em 1886 aos 25 anos.
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