O BUCHEIRO NO PORTÃO DE CASA.

 

Esta imagem é de Santa Cruz das Palmeiras, tirada em 1938.

Em outro artigo já falei um pouco dos matadouros que havia na cidade.

Foi um capítulo de uma época em que não se tinha tanta preocupação com higiene.

Na Rua do Bosque havia um desses matadouros de gado. Aliás, me recordo de dois.

O outro ficava também em meio à mata, próximo à Rua dos Pioneiros.

Eram os “frigoríficos” da época, por onde passavam quase todas as carnes consumidas na cidade.

Naqueles abatedouros improvisados os açougues abatiam o gado a machadadas e penduravam as carcaças em ganchos amarrados em cordas, suspensas em carretilhas, nos galhos das árvores.

Depois de separadas em pedaços, as carnes eram transportadas aos açougues em carroças, sobre folhas de bananeiras e cobertas por lençóis nem sempre limpos, manchados de sangue.

Era festa para os mosquitos e ninguém falava em doenças ou fiscalização sanitária.

Como num desfile fúnebre, a carroça levava em silêncio o cadáver do animal abatido pelas ruas afora, até chegar aos locais de distribuição, onde era dividido entre os moradores ávidos por bom bife.

Depois que os açougueiros iam embora do matadouro, brincávamos com as cabeças de bois deixadas no local.

Havia dezenas de esqueletos de gado espalhados pelo mato, ao redor do matadouro.

De vez em quando, um caminhão fazia a coleta e sumia com eles.

Disseram-me que as ossadas e chifres viravam botões de roupas.

Nos balcões dos açougues não faltavam bacias cheias de torresmos, onde a freguesia se fartava enquanto o pacote da compra não era feito. Todos podiam provar o quanto quisessem dos toucinhos fritos, escolhendo os melhores com os dedos.

Ninguém se importava com mãos sujas.

Além dos vários açougues, vendedores ambulantes também ofereciam carne fresquinha.

Em carroças adaptadas, eram chamados de bucheiros, porque vendiam bucho de boi, além de outros “miúdos” de gado.

Também vendiam carne de porco e cabrito.

A mercadoria que diziam ser abate do dia era transportada num baú de madeira, recoberto por folha de flandres, com uma portinhola na parte traseira, como uma janela.

Era um grande caixote na carrocinha, um “freezer” sem gelo, puxado por uma mula que espantava moscas com o rabo e orelhas, sob o sol quente das manhãs de verão, ou nas geladas manhãs de inverno, quando o vento frio rachava os beiços da gente.

Uma balança de feirante pesava a mercadoria cortada na hora, conforme o gosto do freguês.

Linguiça não faltava, nem chouriço, nem o famoso “cudiguim”.

Naquela época, linguiça tinha trema.

A mesma mão que manipulava a mercadoria pegava no cabo do relho para ordenar o animal a chegar até ao próximo portão.

A corrente da balança, o freio da carroça e o chicote de couro deviam ter o mesmo gosto.

O bucheiro sempre salvava a dona de casa ao trazer até a porta a “mistura” do almoço.

E lá vinha o açougue ambulante, com um cheiro peculiar de carniça.

Logo atrás, um cachorro, magro, de costelas à vista, seguia o carroça. Nunca soube, se seguia o dono ou o cheiro da carne.

Em outra carroça com “furgão” semelhante vinha o padeiro com o pão quentinho.

Chegava antes de o sol nascer, buzinando uma corneta igual a do bucheiro.

As diferenças eram só o horário e o cheiro de fermento fresco.

O aroma que saia da caixa de pães se misturava ao ar puro da madrugada, numa combinação perfeita, desejando bom dia para a rua inteira.

Naquele instantâneo havia um ar poético pela fusão do ar leve da manhã, com a cena bucólica do padeiro, carroça, perfume de pão e animal cheirando capim.

Cheiros da infância que ficam gravados pra sempre.

O leiteiro vinha em seguida, montado em um cavalo, com os litros de leite alojados numa cinta costurada em tecido, na medida certa dos vasilhames.

A vaca tinha sido ordenhada ainda há pouco, no pasto que não ficava muito longe.

Havia uma leiteira que também foi colega de escola.

A memória me é ainda boa, mas não o suficiente para lembrar seu nome, infelizmente.

Era guerreira, pulava da cama muito cedo, ajudava a ordenhar para em seguida distribuir o leite pela cidade. Só depois ia para a aula, montada na égua de carga, em quem, de vez em quando, deixava a gente “dar uma voltinha”.

Gente fina, pena que partiu para a eternidade muito cedo.

Ainda posso ouvir o som do leite caindo na caneca de alumínio que minha mãe segurava para o leiteiro esvaziar o litro.

Em minutos estaria fervendo no fogão de lenha, fazendo uma espessa nata branca, com a qual eu lambuzava o pãozinho partido ao meio.

Pão, café e leite.

Valia a pena levantar cedo.

Hoje não tem mais graça, o pão não é mais gostoso, o leite não é mais o mesmo e o café não é o de minha mãe, que já se foi, assim como também os tempos do bucheiro.

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