A dúvida foi lançada quando na passada segunda-feira o mais recente episódio do programa televisivo “American Pickers”, uma produção do Canal História, se centrou na descoberta do que será, possivelmente, o protótipo da ultra exclusiva linha de Cadillacs designada Madame X. Terá a génese de um dos momentos mais notáveis da história da Cadillac sido de facto resgatada do obscurantismo? Só o tempo dirá.
O programa “American Pickers” centra-se no duo Mike Wolfe e Frank Fritz, comerciantes de antiguidades que viajam pelos Estados Unidos em busca de artigos raros. Contando com 19 temporadas completas e actualmente encontrando-se a vigésima em emissão, os automóveis de interesse histórico já adquiridos pelo duo no passado são numerosos, encontrando-se entre os mesmos um Auburn 653 Phaeton de 1935, um Packard Coupe de 1929 e até a International Harvester Metro que serviu de primeira carrinha de digressão à banda Aerosmith. Contudo, a descoberta e aquisição de um Madame X, especialmente o primeiro dos dois protótipos desta série de automóveis estabelece-se num patamar muito acima das restantes conquistas do duo no domínio dos clássicos.
Os modelos Madame X constituem um marco de excelência e inovação na história da Cadillac, sendo o ponto de partida de um esforço por parte da construtora americana para dominar a atenção – e as bolsas – da mais selecta clientela. A companhia foi a primeira a produzir e disponibilizar ao público automóveis equipados com impressionantes motores V16 em 1930, os quais constituíam a epítome da capacidade técnica do período. Aliados ao inegável apelo das novas motorizações, encontravam-se carroçarias exclusivas da Fleetwood e Fisher com interiores que, sem surpresa, se definiam como dos mais luxuosos do seu tempo. Aliás, as novas criações da Cadillac neste período eram suplantadas apenas pelas da Duesenberg.

Os Madame X nasceram do génio criativo de Harley Earl, uma das figuras mais marcantes da história da General Motors. Earl foi o primeiro chefe do departamento de design da GM e, nessa capacidade, acabaria por se tornar no responsável pela existência do icónico Corvette, tendo sido igualmente o impulsionador da tendência estilística das barbatanas traseiras, a qual dominou a linguagem de design dos automóveis americanos ao longo da década de 50. Harley Earl desejava que os novos Cadillac V16 constituíssem o pico da excelência automóvel; como tal e mesmo antes de começar a esboçar a sua nova criação, Earl partira com Larry Fisher (Presidente da Cadillac e um dos seis irmãos que haviam estabelecido a Fisher Body, então também já sob alçada da GM) num tour pela Europa durante o qual estudara as tendências estilísticas das melhores construtoras de carroçarias do velho continente. A viagem influenciaria o designer a criar um Cadillac de tejadilho baixo, pilares finos, janelas emolduradas com peças cromadas e pára-choques minimalistas e elegantes.

A designação “Madame X” é igualmente da responsabilidade de Harley Earl. De acordo com Maurice Hendry, historiador da Cadillac, Earl adoptara a designação a partir da peça de teatro do mesmo nome à qual o designer assistira quando esta se encontrou em cena no Teatro Fisher em 1929, o qual se localiza imediatamente em frente da sede da GM em Detroit. Embora não sendo uma escolha com a qual Larry Fisher concordasse plenamente, este acabou por ceder ao apelo de Earl mas insistiu que, para efeitos comerciais, se utilizasse “Madam” e não “Madame”, ou seja a versão inglesa do termo e não a francesa; os motivos desta decisão por parte do Presidente da Cadillac não são claros.
Em 1930, após quatro anos em desenvolvimento, a primeira amostra da nova série de Cadillacs encontrava-se finalmente pronta a ser apresentada ao público. Disposto com pompa e circunstância no elegante Waldorf Astoria durante o Salão Automóvel de Nova Iorque, o Madame X V16 dominou a atenção dos visitantes. A recepção calorosa à nova proposta de luxo de Cadillac traduziu-se inclusive em encomendas, isto apesar do preço de mais de 7.500 dólares. De modo a colocar este valor em perspectiva, recorde-se que um Ford Modelo T do mesmo período custava pouco mais de 430 dólares e que indivíduos em carreiras bem remuneradas (médicos e advogados, a título de exemplo) contavam com um salário anual na casa dos 3.000 dólares. Pouco depois da apresentação pública, ao já particularmente elevado preço dos Madame X aliaram-se as consequências do crash da bolsa de 1929. Em breve, os Estados Unidos encontrar-se-iam imersos nas profundas dificuldades da Grande Depressão, tornando a venda de automóveis como os Madame X extremamente desafiante. Nesse período, já não era só o preço a constituir obstáculo, mas também a própria percepção social destes veículos acarretava consequências indesejáveis; tornara-se de mau tom viajar pelas ruas de uma América repleta de pessoas que batalhavam diariamente contra sérias limitações financeiras em automóveis super luxuosos, sendo muitos destes então recolhidos a garagens nas quais permaneceriam durante anos ou até mesmo décadas.

Mas terá então sido de facto redescoberta a génese do glorioso excesso da Cadillac dos anos 30 no decorrer de um programa televisivo? Ainda não existem certezas absolutas, mas os primeiros indícios são bastante prometedores. Após receberem informação de que o Madame X protótipo número um teria sobrevivido e que se encontrava nas mãos dos herdeiros de um coleccionador de Packards no Michigan, os caçadores de antiguidades deslocaram-se ao local e encontraram o automóvel ainda aparentemente na sua forma original, sem evidências de restauros profundos ao longo dos seus 90 anos de vida. A carroçaria corresponde sem dúvida aos primeiros exemplares ainda construídos na fábrica da Fleetwood na Pensilvânia antes da GM transferir produção para novas instalações em Detroit durante 1930.

O pára-brisas dividido e disposto na vertical difere dos Madame X construídos em Detroit, os quais viriam a utilizar uma peça de vidro inteira e disposta com um ângulo de inclinação de 18º. Também o número do chassis aparenta validar o achado; embora não tenha sido directamente referido no programa, a investigação feita pelos compradores passou por uma análise da base de dados referente a Cadillacs V16 compilada por Yann Saunders e pelo Cadillac-LaSalle Club, Inc. Aí é apontado que, além de um estudo preliminar por parte de Harley Earl num chassis LaSalle, o designer coordenou a construção de dois protótipos Madame X: o primeiro, chassis número 336340 deixou a fábrica da Fleetwood a 6 de Maio de 1929; o segundo, chassis número 337668 foi terminado no dia 29 do mesmo mês. Ambos foram montados na plataforma 314-B da Cadillac e ambos se encontravam equipados com motores V8 correspondentes a essa mesma plataforma. Contudo, o segundo protótipo viria a ser transformado para receber o novo V16 da Cadillac, sendo esse o automóvel apresentado no Salão de Nova Iorque em 1930. O chassis 336340 permaneceria com motor V8, sendo o único Madame X de que há registo não equipado com um V16.

Foi precisamente com o automóvel de chassis número 336340 (ainda com um V8 como a quando da sua conclusão em 1929) que os protagonistas do programa televisivo se depararam, o qual acabaram por adquirir pela soma de 90.000 dólares. Confirmando-se a veracidade do achado, não é nada menos que extraordinário o surgimento do protótipo número um da série Madame X após décadas de incerteza acerca do destino do mesmo. Certamente que, constituindo a compra mais dispendiosa alguma vez realizada no decorrer do programa, serão numerosas as futuras actualizações acerca do interessantíssimo automóvel, potencialmente vindo a providenciar esclarecimentos fascinantes acerca da provenance do mesmo.
Pouco depois da emissão do episódio adequadamente designado “The Mysterious Madame X”, a discussão já corria nos fóruns de Cadillacs clássicos acerca da validade da descoberta, a qual aparenta ter encontrado doses equivalentes de entusiasmo e cepticismo. Curiosamente, nos media dedicados ao mundo dos clássicos, a história parece ter passado totalmente despercebida, o que não reflecte de modo algum a tremenda potencial significância do achado.

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