Por que o brasileiro parou de consumir como antes

Após 'susto' no cartão de crédito, a diarista Adriana Donizete da Silva passou a controlar mais seus gastos
Após 'susto' no cartão de crédito, a diarista Adriana Donizete da Silva passou a controlar mais seus gastos (Michele Muller/VEJA.com)

Parcelas a pagar e incertezas em relação ao futuro: essa é a agenda de quem ajudou o PIB a crescer nos últimos anos — e agora teme perder suas conquistas

A presidente Dilma tem aproveitado o horário eleitoral para propagandear que seu governo ajudou os brasileiros a aumentarem seu padrão de consumo. 
Às vésperas das eleições, contudo, há evidências inegáveis de que o poder das medidas de estímulo ao consumo se esgota. 
Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que não só a economia está em recessão técnica, mas também que a despesa de consumo das famílias, um dos indicadores mais importantes do cálculo do PIB, cresce no menor ritmo dos últimos cinco anos. 
No acumulado de 12 meses terminados em junho, o consumo das famílias cresceu 2,1%. Esse é o pior resultado desde o primeiro trimestre de 2009, quando o avanço foi de 1,3%. Ilustram tal estatística histórias de famílias como a da diarista Adriana Donizete da Silva, que apostaram no cenário otimista vendido por Dilma, entraram de cabeça em financiamentos de alto valor e agora têm de fazer malabarismos para manter os bens conquistados. 
Em dois anos, Adriana comprou um tablet, um carro zero, um smartphone e está construindo um sobrado de três quartos em Araucária, no Paraná – tudo pela primeira vez. 
No Natal passado, exagerou na dose e se endividou no cartão de crédito. Resultado: freio nas compras. 
“Hoje eu penso bem antes de comprar. Aprendi a lição. Chega de presentes caros”.

O dado trazido pelo IBGE denota um sistema que começa a entrar em colapso por suas fraquezas internas — e não por causa de uma crise externa à qual se possa atribuir a culpa. 
À diferença de 2009, quando, de fato, o mundo passava por uma grave turbulência, os problemas de 2014 são intrínsecos à economia brasileira e se devem, sobretudo, à má condução da política econômica. 
Com a inflação corroendo a renda da população e as parcelas de financiamentos abocanhando grandes pedaços do orçamento das famílias, é natural que o consumo arrefeça. 
As vendas no varejo, por exemplo, cresceram apenas 4,2% no primeiro semestre — o segundo pior resultado desde 2006, diz o instituto. Além disso, o último dado de inadimplência contabilizado pela Serasa mostrou que 57 milhões estão com contas em atraso. 
Um número recorde que representa mais de 40% da população adulta, diz o economista do órgão, Luiz Rabi. O Banco Central, que detém a taxa oficial de maus pagadores, apresenta um cenário mais brando: inadimplência de 6,6% dos brasileiros. 
O recorde, pelos cálculos do BC, foi visto em 2012. Mas, diferente daquele ano, quando os juros chegaram a uma taxa anual de 7,25%, a taxa Selic está em 11%, sem perspectivas de novos cortes. 
Segundo Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, a estimativa é de juros mais altos para 2015. “Manter a Selic nos atuais 11% com a política que temos será um tiro no pé”, afirma. 
Para Vale, quando se tem a inflação no teto da meta mesmo com a economia em recessão, não há alternativa para conter os preços senão subir juros. E esse é o caso do Brasil.
Ricardo Matsukawa/VEJA.com
Paulo
Paulo César Rosa passou a jantar mais em casa para economizar
inflação tem operado como um dos principais freios nos gastos da população. Diante da alta dos preços, o publicitário paulistano Paulo César Rosa de Souza se viu obrigado a mudar seus hábitos de consumo para conseguir fechar o mês com a conta no azul. 
“No último ano senti uma grande diferença no custo de vida e, com isso, tive de renunciar a várias coisas, como jantar fora, pagar estacionamento para o carro e até frequentar shoppings”, disse Souza, que paga ainda um financiamento habitacional de 35 anos da Caixa. 
“Só com o apartamento, gasto 40% da minha renda mensal”, diz. O problema é que não se trata apenas de fugir de produtos caros e evitar supérfluos, mas também da carga de desconfiança que o descontrole inflacionário carrega consigo. 
A ineficiência da política monetária em trazer o índice de volta ao centro da meta, de 4,5% ao ano, cria toda uma cadeia de receio de consumo que é captada pelo Índice de Confiança do Consumidor (ICC), calculado pela Fundação Getulio Vargas (FGV). 
Em agosto, ele atingiu seu pior nível também desde 2009. Isso significa que, não só os brasileiros estão endividados e assustados com a alta dos preços, como também não sabem se conseguirão, no futuro, arcar com as parcelas assumidas.
Nessa dinâmica, o mercado de trabalho tem papel vital. Numa situação de pleno emprego, ainda que as dívidas assustem, tem-se a perspectiva de conseguir pagá-las. E essa tem sido a realidade dos brasileiros ao longo dos últimos anos. 
O dado mais recente da taxa de desemprego remonta ao mês de abril e mostra o indicador em sua mínima histórica de 4,7%. Devido a uma crise institucional e greves no IBGE, a divulgação da taxa foi temporariamente cancelada e só deve ser retomada este mês. Nesse intervalo, houve uma deterioração importante no emprego apontada por dados do Ministério do Trabalho. 
Em julho, por exemplo, o Brasil abriu pouco mais de 11,5 mil vagas formais de trabalho, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o pior resultado para o mês desde 1999. Já o emprego na indústria acumula em 2014 queda de 2,3% sobre o mesmo período de 2013. Em 12 meses, o recuo é de 1,9%. 
“O emprego avança em um ritmo quase parando. Além disso, apesar de os salários estarem crescendo, isso se dá em um ritmo muito menor do que no ano passado”, explica José Pastore, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em mercado de trabalho.
Ricardo Matsukawa/VEJA.comAnderson Hans, São Paulo (SP)
Anderson Hans: dúvidas e receio em relação ao futuro
Anderson Hanz, que trabalha na área de mídias sociais de uma rede de cursinhos universitários em São Paulo, está no time de brasileiros que trocou de carro e comprou apartamento nos últimos dois anos. 
O imóvel saiu por 350 mil reais e será pago por financiamento em banco no período de 36 anos. Além do automóvel, Hanz também trocou o notebook, o smartphone e comprou uma smart TV de led para seu quarto. 
O orçamento ficou apertado. Agora, ele se arma de cautela e teme que o encolhimento da economia atinja seu emprego. 
Segundo Hanz, com o enxugamento da renda das famílias, pode não sobrar dinheiro para investir na capacitação dos filhos. “A minha área profissional, especificamente, é de crescimento. Mas há fatores que extrapolam a minha função e que me preocupam”, afirmou.
Na outra ponta do freio do consumo está o mercado de crédito — mais restrito hoje do que no início da década. Desde o início do ciclo de alta da Selic, em abril do ano passado, o crescimento anual do estoque de crédito em operações com empréstimos a juros de mercado desacelerou de 9,2% para 5%, mostram os dados do Banco Central. O aperto ocorreu mesmo diante da inadimplência medida pelo BC estar num patamar estável. 
O governo se mostrou desconfortável com a ‘mão fechada’, por assim dizer, dos bancos privados, e tentou atuar por meio do Banco Central. 
Para a equipe econômica, os bancos são parcialmente ‘culpados’ pelo desempenho econômico ruim. Por isso, em apenas dois meses, o BC reduziu a contribuição dos depósitos compulsórios das instituições justamente para permitir que injetem mais recursos na economia. 
Os depósitos são a contribuição obrigatória que os bancos fazem junto ao BC, cuja alíquota é calculada com base no volume de depósitos feitos à vista e a prazo nas instituições. A obrigação reduz o risco sobre o sistema financeiro e pode ser usada como ferramenta de política monetária. “Se a criação de emprego e a renda desaceleram e o crédito permanece restrito, o consumo continuará sendo afetado”, afirma Marcel Solineo, economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).
Fábio Conterno/VEJA.com
Alexandre Hemdges, Cascavel (PR)
Alexandre Hemdges e sua filha Manoela, em Cascavel (PR)


O encarecimento do crédito despertou preocupação no advogado Alexandre Hemdges, de Cascavel, no Paraná, que passou por apuros ao usar o cheque especial e deparar-se com os juros astronômicos cobrados sobre essa modalidade. 
Os gastos também aumentaram com a chegada de sua filha, Manoela, de apenas um ano e nove meses. Com o aperto no orçamento, Hemdges teve de deixar certos luxos, como o curso de alemão e viagens internacionais. 
“Tive de abrir mão porque tenho medo de não conseguir pagar”, afirma. O caso do advogado é emblemático porque ilustra a contradição entre a realidade e o que prega o discurso de Dilma em seu programa de governo. 
O texto exalta como sua gestão foi essencial para que brasileiros conseguissem oferecer mais a seus filhos. Diz o programa: “os brasileiros não querem mais o mínimo necessário para viver, mas o máximo possível para que mantenham o seu poder de consumo e possam acenar para seus filhos com vidas melhores que as deles”. 
O que se vê, contudo, são famílias com medo das dívidas, do desemprego e, em última instância, do amanhã

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