“A ciência continua a ser um canal para a magia – a crença de que, para a vontade humana, com os poderes do conhecimento, nada é impossível.” (John Gray)
O ser humano não suporta sua finitude e está sempre tentando ludibriar a morte de forma obsessiva. O que antes fora papel das religiões, na era moderna tornou-se a função da própria ciência, que se transformou em um instrumento investido contra a morte. Colocamos o poder do conhecimento no lugar de Deus para nos libertar da mortalidade. Agindo assim, lançamos a ciência contra ela mesma, apelando para a magia.
É o que sustenta o filósofo John Gray em A busca pela imortalidade, recém-lançado no Brasil pela editora Record. Li do mesmo autor Cachorros de Palha, Two Faces of Liberalisme Missa Negra. Nem sempre concordei com seus argumentos, mas invariavelmente são leituras que provocam intensa reflexão e testam nossas próprias convicções.
Gray ataca a visão moderna de fé no progresso, pois rejeita a tese de que o avanço da moral acompanha o material. O homem não pode esquecer que é também um animal, apesar de ter autoconsciência. Se os pensadores seculares depositam imensa fé na Razão, o filósofo britânico é mais cético. “Os humanos pensam que são seres livres, conscientes, quando na verdade são animais enganados”, escreve em Cachorros de Palha.
No novo livro, Gray resgata seu tom pessimista do best-seller anterior. Naquele, ele escreveu: “Se existe alguma coisa certa sobre este século, é esta: o poder conferido à ‘humanidade’ pelas novas tecnologias será usado para cometer crimes atrozes contra ela”. Neste, ele endossa o mesmo ponto de vista: “O crescimento do conhecimento aumenta as possibilidades dos seres humanos; não pode impedi-los de serem o que são”. A ciência também nos trouxe as armas de destruição em massa.
Esse é o pano de fundo que serve para sua análise crítica dos movimentos ocultistas que buscaram desesperadamente provar a nossa imortalidade, para dar algum sentido às nossas vidas. Na primeira parte, ele analisa o caso de membros da elite da Inglaterra vitoriana, cujo efeito dessa pseudociência ficou mais limitado às suas vidas pessoais.
Na segunda parte, ele busca no ocultismo da Rússia bolchevique um exemplo dessa tentativa de substituir a religião pela “ciência”. Eram os “construtores de deuses”, como se intitulavam de maneira arrogante. Aqui o estrago foi infinitamente maior e recaiu sobre terceiros.
Em comum, o desejo de superar a morte a todo custo. Ainda que ao custo de refazer o ser humano, tarefa que poderia justificar a morte de dezenas de milhões de cobaias no processo. O prêmio era atraente demais para ser ignorado. Gray busca em Górki e H.G.Wells exemplos de como essa obsessão com a imortalidade exerceu forte influência na defesa de projetos revolucionários. Deificar a Humanidade era seu propósito, uma empreitada que envolvia a abolição da morte.
Vários enxergaram no comunismo esse cunho religioso. Lunachárski, que foi presidente do Comissariado para a Educação e a Cultura do regime bolchevique, reconheceu que ele era, no fundo, uma religião nova, e que a revolução não era apenas uma transformação radical da vida social, significando uma mutação nos seres humanos, a criação de uma nova espécie. O “novo homem” abnegado com que muitos ainda sonham.
Imbuídos de tal fé fervorosa, os comunistas não viam limites para seu projeto. O próprio Górki assumia que “o povo meio selvagem, estúpido e difícil da aldeia” iria desaparecer, que milhões morreriam, mas que novos homens “letrados, inteligentes e vigorosos” ocupariam seus lugares. Os inimigos dessa profunda reforma da humanidade deveriam ser exterminados se necessário.
A manutenção do cadáver de Lenin até hoje mostra como os bolcheviques desejavam driblar a morte. A decisão de embalsamar o líder revolucionário pode ter tido cálculo político, mas a fé mágica no poder da ciência teve grande peso também. Muitos acreditavam que seria possível, com o conhecimento humano, ressuscitá-lo no futuro.
Até uma Comissão de Imortalização foi criada. Mas, como diz Gray, em vez de abrir caminho para a humanidade imortal, “a ciência podia apenas conservar uma carcaça sem vida”. E sob o custo de milhões de vidas humanas inocentes, vale notar.
A terceira e última parte do livro é dedicada aos movimentos mais recentes, como a crença de que será possível superar a morte por meio da transcendência da mente sobre o corpo ou com base em dietas que postergarão nossos anos de vida até que a ciência praticamente acabe com a morte. “Mais do que nunca”, diz, “a ciência é vista como uma técnica para resolver o insolúvel”.
Os homens não aceitam o incognoscível. Pretendem conhecer tudo, e controlar tudo. Inclusive seu destino inexorável, que é a morte. Como escreveu George Santayana, citado por Gray, “um espírito verdadeiramente despojado não pode assumir que o mundo é totalmente inteligível. Pode haver números irracionais, pode haver fatos concretos, pode haver abismos escuros ante os quais a inteligência deve silenciar por temor de ficar louca”.
Com essa obsessão pela imortalidade, Gray acha que os homens acabam vivendo de forma menos calma e agradável, pois ficam incapazes de ver, de forma mais clara, “que o ser que queremos salvar da morte já está morto”. Aceitar o que é inevitável talvez seja realmente melhor. Gray, porém, está seguro de que as esperanças que fizeram com que o cadáver de Lenin fosse lacrado em um mausoléu cubista não foram abandonadas. Diz:
Ludibriar o envelhecimento com uma dieta de baixas calorias, carregar nossa mente em um supercomputador, migrar para o espaço exterior. (…) Ao ansiarem pela vida eterna, os seres humanos mostram que permanecem sendo o animal que se define pela morte.
A imortalidade de fato seria insuportável. “O que poderia ser mais mortal do que ser incapaz de morrer?”, pergunta Gray. Já escrevi em maiores detalhes sobre isso aqui. O imortal seria o imóvel, algo como a utopia, “um lugar onde ninguém quer viver”. O homem teria a paz do túmulo. “A imortalidade é apenas a alma que empalidece, projetada numa tela branca. Há mais luz do sol na queda de uma folha”, finaliza o autor.
Rodrigo Constantino
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