Um especialista australiano descobriu num texto português do século XVI uma prova de que a quarentena ou o isolamento podem impedir a globalização de uma doença como a covid-19, que já provocou mais de 30 mil mortos.
O texto português “é um registo antigo
de uma doença que passa de animais para humanos, e mostra que a quarentena pode
ser eficaz para a travar”, disse à agência Lusa Sanjaya Senanayake, professor
de doenças infecciosas na Universidade Nacional da Austrália, em Camberra.
Senanayake referia-se a uma passagem do
“Tratado das ilhas Maluco e dos costumes índios e de tudo o mais”, de autor
desconhecido, mas geralmente atribuído a António Galvão (c. 1490-1557).
Apelidado de “apóstolo das Molucas”,
António Galvão governou a partir de Ternate as chamadas ilhas das Especiarias,
na atual Indonésia, entre 1536 e 1540, tendo iniciado o seu mandato 15 anos
depois da passagem pela região da expedição de Fernão de Magalhães, já
comandada por Juan Sebastián Elcano.
O texto manuscrito foi encontrado no
Arquivo Geral das Índias, em Sevilha, e publicado em inglês (“A Treatsie on the
Moluccas”, Hubert Jacobs, Jesuit Historical Institute, 1971) e em português
contemporâneo (“Tratado das ilhas Molucas”, Luís de Albuquerque e Maria da
Graça Pericão, Publicações Alfa, 1989).
A obra versa sobre o governo de António
Galvão nas Molucas e nela se narra um surto de uma doença no final de abril de
1539, que primeiro matou galinhas e depois humanos.
“Com os ventos sul, veio esta
enfermidade a Bachão [Bacan]; logo se espalhou por todas as ilhas, começando
nas galinhas (…), que de António Galvão se acharam mais de cinquenta ou
sessenta mortas, que se empolavam sãs e gordas; e depois lhe adoeceram passante
de cento e dez pessoas, entre criados e escravos, que só um não ficou e a mor
parte lhe faleceu, afora os portugueses e filhos deles”, lê-se no texto.
“E por toda a terra era este mal tão
geral que os não podiam enterrar e o mar era coalhado dos mortos e muitos
lugares despovoados; andavam os homens e mulheres como pasmados, dizendo que
nunca tal viram nem ouviram aos antepassados”, conta ainda o narrador.
Em dezembro de 2007, Sanjaya Senanayake
e o historiador Brett Baker publicaram um artigo na revista científica The
Medical Journal of Australia sobre o texto histórico, numa altura em que o
mundo enfrentava a pandemia de gripe A, inicialmente designada como gripe
suína.
“A epidemia do século XVI provavelmente
não se espalhou devido ao isolamento das ilhas do resto do mundo por causa de
padrões comerciais determinados pelo clima [monção]. Isto reforça o valor da
quarentena (mesmo não intencional) ou do isolamento como medida de saúde
pública. Dada a facilidade de circulação global de pessoas, animais e cargas na
era moderna, a sua aplicação será agora um desafio muito maior”, concluíram
Senanayake e Baker.
Sanjaya Senanayake admitiu à Lusa, num
contacto telefónico em Camberra, que o estudo do texto português “não ajudou
necessariamente a combater a gripe suína”.
Mas mostrou que o isolamento
intencional das ilhas próximas de Ternate por não haver navegação do comércio
das especiarias devido à ausência de vento terá evitado a disseminação de uma
infeção que passou de animais para humanos.
A conclusão mantém-se atual, e Sanjaya
Senanayake não tem dúvidas sobre a aplicação da quarentena para combater a
covid-19, uma doença que se tornou global devido às viagens.
“As três coisas que usamos para
combater a pandemia são quarentena, vacinas e medicamentos. São as três grandes
ferramentas que temos para a covid-19”, disse Sanjaya Senanayake.
O especialista australiano admitiu que
uma vacina para a covid-19 demorará “10 ou 12 meses” e que é impossível saber
se haverá medicamentos eficazes em quantidade suficiente para tratar “milhões,
dezenas de milhões ou centenas de milhões de pessoas”.
“Mas a quarentena é uma boa maneira de
parar ou, pelo menos, de retardar um surto. E foi o que vimos neste texto
português: a quarentena não intencional por causa das estações climáticas e a
difícil acessibilidade mostram que a quarentena pode ser eficaz”, concluiu.
Sobre a atual pandemia, Sanjaya
Senanayake é enfático ao dizer que “ninguém realmente sabe” quando é que poderá
ser controlada.
“O surto pode desaparecer ou pode
piorar. (…) Até pode ser como a gripe espanhola em 1918, em que houve uma
primeira onda que não foi tão má e, pouco tempo depois, houve uma segunda onda
que foi muito, muito má”, lembrou, referindo-se à pandemia que matou mais de 50
milhões de pessoas.
“É absolutamente imprevisível. (…)
Esperemos que não dure muito”, acrescentou.
Fonte: ZAP
Nenhum comentário:
Postar um comentário