O governo nacional da Austrália decidiu em 2015 que tentaria matar dois milhões de gatos selvagens até 2020.
Por quê?
Devido à grande preocupação pela fauna nativa do país – em particular, grupos de pequenos roedores e marsupiais ameaçados para os quais os gatos se tornaram predadores mortais.
O plano
Segundo o Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, 211.560 gatos foram mortos nos primeiros 12 meses após o anúncio do plano.
Um dos métodos utilizados é uma receita de salsicha desenvolvida pelo Dr. Dave Algar, principal pesquisador do Departamento de Conservação da Biodiversidade e Atrações do estado da Austrália Ocidental: carne de canguru, gordura de frango, uma mistura de ervas e especiarias e um veneno chamado 1080, derivado de plantas de Gastrolobium altamente letal para alguns animais como gatos, cujos caminhos evolutivos não exigiram que desenvolvessem tolerância a ele.
As salsichas são espalhadas por avião, cobrindo milhares de hectares de terra. Em média, quase meio milhão de iscas são plantadas no curso de um mês.
Mas soltar salsichas letais do céu é apenas uma parte dos esforços do país para erradicar os gatos selvagens, que também incluem armadilhas e caça com arcos e armas (sim, você leu certo).
Polêmica
Quando a política foi anunciada, foi recebida em alguns lugares com muita polêmica. Os adversários mais ardorosos da ideia eram, em geral, estrangeiros. Antes mesmo de a estratégia ser anunciada, os jornais australianos aplaudiram o “plano audacioso para resgatar nossos pequenos emblemas”.
Greg Hunt, ministro do Meio Ambiente da época, anunciou o programa em um zoológico: a questão foi enquadrada como um grande esquema para proteger a vida selvagem da Austrália. A guerra contra os gatos – como qualquer outra – foi expressa em linguagem sobre missão e valores. Algo exclusivamente australiano estava sob ameaça, e é isso que seria necessário para salvá-lo. Patriotas se uniram à causa.
Ao mesmo tempo, Brigitte Bardot escreveu uma carta suplicando ao ministro que parasse com o que ela chamou de genocídio animal. Apesar da raiva de alguns grupos de direitos dos animais e preocupações sobre os efeitos potenciais sobre os gatos de estimação, a Austrália prosseguiu com seu plano.
A questão não é nada simples. Claro que não é legal matar gatos. Mas, na Austrália, gatos estão matando – e extinguindo – centenas de espécies. Seriam essas espécies menos importantes que os gatos? E agora?
Os gatos da Austrália
Ao contrário de lugares como a América do Norte, a Austrália não tem espécies nativas de gatos. Ao longo de milhões de anos de isolamento, os animais nativos do país se acostumaram com uma ordem predatória diferente, de modo que, embora os gatos não sejam necessariamente mais predominantes lá do que em qualquer outro lugar, sua presença é mais ruinosa para a nação da Oceania.
Eles também se tornaram quase onipresentes: de acordo com as estimativas dos conservacionistas locais, os gatos selvagens estabeleceram uma posição permanente em 99,8% do país, com sua densidade chegando a 100 por quilômetro quadrado em algumas áreas – mesmo em lugares quase desprovidos de assentamentos humanos, como a remota e escarpada região de Kimberley.
O esforço de controle da população felina, como o programa de “salsichas letais” da Austrália Ocidental, foi feito para aliviar a pressão da predação que os gatos exercem. Diante de uma escolha entre uma espécie considerada como um animal de estimação precioso e as muitas criaturas pequenas de sua terra única, os australianos parecem ter decidido que a guarda dos animais selvagens remanescentes poderia significar um pouco de derramamento de sangue.
Espécie invasiva?
Gatos apareceram em assentamentos humanos de forma aparentemente espontânea, provavelmente em busca de alimento. Restos arqueológicos do Crescente Fértil no atual Líbano, Israel e territórios palestinos já apontam para a presença de Felis silvestris, o predecessor selvagem de Felis catus.
Sua utilidade em torno dos depósitos de grãos que atraíam pequenos roedores provavelmente fez as pessoas se encantarem com os animais. A primeira evidência de sua domesticação é um conjunto de restos mortais em Chipre datando por volta de 7500 aC.
Alguns milhares de anos depois, nas proximidades do Egito e da Grécia, eles se tornaram associados a deusas e elevados a objetos simbólicos de veneração. Ao contrário de outros animais, criados especificamente para o consumo ou para ajudar nas tarefas, os gatos nunca foram submetidos a um processo de domesticação direcionado.
E como o Felis catus chegou pela primeira vez na Austrália? Ninguém sabe realmente. Testes genéticos mostraram que os gatos australianos descendem dos europeus. Talvez eles tenham vindo com a Primeira Frota para Sydney em 1788 – a flotilha de navios que transportavam condenados e fuzileiros navais que iniciariam a colonização da Austrália pelos ingleses. Tendo sido trazidos para lidar com os ratos nos navios, estabeleceram-se na costa sudeste e se espalharam com velocidade surpreendente.
Predação
No país, os gatos predam pequenos animais como o “boodie”, parente do canguru do tamanho de um coelho, e o “bandicoot”, um pequeno marsupial. Antes dos felinos, os boodies eram um dos mais difundidos mamíferos liliputianos do continente. Sua prodigiosa escavação quase desestabilizou os trilhos de uma ferrovia em 1908. Em meados do século XX, uma subespécie foi declarada extinta no continente australiano.
Aliás, desde a chegada da Primeira Frota, 34 espécies de mamíferos foram extintas na Austrália. Estas não existiam em nenhum outro lugar na Terra. Considera-se que os gatos foram a ameaça principal para 22 das espécies extintas, como o potoroo e o wallaby-rabo-de-prego-crescente.
E, hoje, mais de 100 espécies de mamíferos estão listadas entre “quase ameaçadas” e “críticas” pela União Internacional para a Conservação da Natureza. A região tem a maior taxa de extinção de mamíferos do mundo. “As recentes taxas de extinção na Austrália são incomparáveis”, disse John Woinarski, um dos principais pesquisadores de conservação da Austrália. “É calamitoso”.
O que é incomum nas extinções de mamíferos na Austrália é que, em contraste com quase todos os outros lugares, os animais menores são os mais atingidos. Depois que a onda de desaparecimentos de espécies do Pleistoceno levou enormes criaturas como tigres-dentes-de-sabre e mamutes-lanudos, grandes mamíferos em todo o mundo continuaram a sofrer pressões, principalmente de humanos. Globalmente, são rinocerontes, elefantes e gorilas que estão entre os mais ameaçados. Não na Austrália. Lá, animais que são do tamanho de uma refeição perfeita para um gato ou uma raposa (outra espécie “invasora” predadora no país) é que estão desaparecendo.
O que vale mais: os gatos ou diversas espécies nativas à beira da extinção?
Além dos mamíferos, pesquisas australianas descobriram que gatos matam cerca de 377 milhões de aves e 649 milhões de répteis a cada ano na Austrália. Sua presença representa uma das maiores ameaças à existência continuada de certos pequenos animais.
No começo, a PETA Austrália tinha suas reservas com o plano governamental, mas em princípio reconhecia que os gatos selvagens caçavam espécies até um ponto em que elas não podiam mais sobreviver.
Petições protestando contra o abate, organizadas nos Estados Unidos e na Europa, foram recebidas com desdém. Inclusive, o gato não foi o primeiro predador a ser considerado tão destrutivo que precisava ser eliminado, e a Austrália já iniciou esforços para controlar outros animais introduzidos, como coelhos e raposas.
Apesar disso, muitos dos proprietários de gatos do país não ficaram felizes. Segundo a ecologista Katherine Moseby, isso ocorre porque as pessoas têm uma conexão mais forte com os gatos do que com criaturas selvagens desconhecidas.
“Os gatos realmente provocam as emoções das pessoas. As pessoas não sabem o que é um bandicoot, porque não passam tempo com animais nativos. Mas realmente amam e se preocupam com seus gatos, o que é compreensível”, esclarece.
Excelentes caçadores
Moseby acredita que a análise forense deveria ser aplicada para descobrir os hábitos dos gatos. Em seu trabalho acadêmico, ela sugeriu o uso de perfis de predadores – geralmente empregados para identificar ursos polares ou tigres que desenvolveram a disposição de atacar seres humanos – para se concentrar em gatos individuais que são especialmente bons em caçar animais selvagens nativos: os chamados gatos “catastróficos”, geralmente machos grandes, que dominam a arte de caçar animais como os quolls e saem em “matanças esbanjadoras”.
Ao colocar colares de GPS e VHF em gatos, cientistas de toda a Austrália perceberam o pouco que entendem sobre as criaturas que estão tentando controlar. Pat Hodgens, um ecologista da Ilha Kangaroo, chegou a localizar dezenas de gatos que aprenderam a caçar wallabies iguais a ele em peso.
Gatos caçam sempre, não importa o quê. Mesmo que não precisem comer, são programados para perseguir presa disponível. Se matam quando não estão com fome, comem apenas a parte mais atraente da presa, geralmente o tecido mole, tentam guardá-la para mais tarde ou simplesmente abandonam a carcaça.
Prós e contras, nenhuma conclusão
Mesmo que as iscas em larga escala, como as salsichas que caem dos aviões, tenham sido eficazes na redução do número de gatos, muitas vezes pela metade ou mais, foram os agricultores e caçadores que mais contribuíram para a causa: dados do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne mostraram que atiradores foram responsáveis por 83% das mortes de gatos selvagens em todo o país no primeiro ano dos esforços da Austrália.
A maioria dos caçadores carrega armas, às vezes arcos. Mas o fato de essas mortes não parecerem nada “humanas” (no sentido de que o animal sofre) é um dos piores “contras” dessa política australiana.
E há ainda um outro argumento a se considerar: Daniel Ramp, diretor do Centro de Conservação Compassiva em Sydney, afirma que o programa é baseado em estigmas contra espécies introduzidas. Os adeptos da conservação compassiva dizem que a Austrália deve abraçar os gatos como um elemento de seu ambiente, em vez de tentar restaurar os ecossistemas a um ponto arbitrário na história. Para Ramp, animais nativos como boodies são alvos fáceis para gatos não porque evoluíram sem tal predador; na verdade, são mais vulneráveis aos predadores mais fortes por causa das tentativas de salvá-los.
Mas Moseby e a maioria dos cientistas acreditam que já estão considerando o complicado equilíbrio das coisas. A inércia sobre a questão dos gatos levará a novas extinções. Se a escolha é entre nutrir as vidas de animais individuais e lutar para impedir que espécies inteiras sejam devastadas, então, a visão infeliz de algum sangue é, para eles, inevitável. [NYTimes]
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