Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, o diretor-geral da
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), José
Graziano da Silva, afirma que a Década das Nações Unidas para Agricultura Familiar 2019-2028 “abre uma
extraordinária janela de oportunidades”, em meio ao processo de reconhecimento
global da importância dos agricultores familiares para o desenvolvimento
sustentável, no contexto da Agenda 2030 e dos 17 Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (ODS).
O principal objetivo da Década é promover a elaboração e implementação
de marcos normativos e políticas públicas específicas para a agricultura
familiar, disse Graziano. Leia o artigo completo.
Agricultores familiares no Rio de Janeiro. Foto: GERJ/Paulo Filgueiras
Por
José Graziano da Silva*
Entre 27 e 29 de maio último, a Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura (FAO) e o Fundo Internacional para o Desenvolvimento
Agrícola (FIDA) organizaram uma Conferência na sede da FAO, em Roma, para
inaugurar a Década das Nações Unidas para Agricultura Familiar 2019-2028.
A Década, aprovada em dezembro de 2017 pela Assembleia-Geral da ONU,
abre uma extraordinária janela de oportunidades, em meio ao processo de
reconhecimento global da importância dos agricultores familiares para o
desenvolvimento sustentável, no contexto da Agenda 2030 e dos 17 Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS).
A grande maioria (cerca de 70%) das pessoas que sofrem de fome no mundo
vive em áreas rurais pobres de países em desenvolvimento, especialmente na
África Subsaariana e no Sudeste Asiático. Muitos deles são agricultores
familiares de subsistência, o que inclui camponeses, pastores, pescadores de
pequena escala, silvicultores, extrativistas, entre outros. Ao mesmo tempo, a
agricultura familiar (espalhada por todo o planeta com uma rede de 500 milhões
de propriedades) é responsável por cerca de 50% a 80% do comércio in natura de
alimentos.
Esse é o nosso paradoxo: um setor que está em risco de fome é também
crucial para a segurança alimentar global. É importante frisar também que a
agricultura familiar produz alimentos saudáveis e nutritivos, como frutas, ovos
e legumes, cujo consumo é fundamental para combater os níveis crescentes de
obesidade e desnutrição em todo o mundo.
As atividades da Década para Agricultura Familiar são conduzidas a partir
de decisões tomadas pelo Comitê Diretor da Década, que é formado por três
organizações globais de agricultores familiares (La Via Campesina. Fórum Rural
Mundial e Organização Mundial dos Agricultores), cinco organizações regionais
(Coprofam, Roppa, AFA, Pion e ECVC) e 24 países, dos quais 19 já foram
indicados por seus grupos regionais (Irã, Kuwait, Costa Rica, República
Dominicana, Uruguai, Chile, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Angola,
Burkina Faso, Indonésia, Filipinas, Índia, Bangladesh, Hungria, Suíça, Itália e
França).
Foi a partir de decisões e orientações do Comitê Diretor que chegouse à
aprovação do Plano de Ação Global da Década, também lançado durante a
Conferência no fim de maio. O Plano de Ação foi elaborado a partir de um longo
processo de consulta pública em sete idiomas, realizado por meio da Plataforma
da FAO de Conhecimento da Agricultura Familiar.
Conflitos e impactos das mudanças climáticas são hoje as principais
causas da fome no mundo. No entanto, a fome também tem aumentado onde a
economia desacelerou ou contraiu, em particular em países de renda média na
América Latina, África e Ásia
O principal objetivo da Década é promover a elaboração e implementação
de marcos normativos e políticas públicas específicas para a agricultura
familiar. A esse respeito, espera-se que os próprios países elaborem Planos
Nacionais. Dessa forma, a FAO e o FIDA (agências da ONU implementadoras da
Década) poderão ter melhor conhecimento das demandas e da situação de cada
país. Por exemplo, os conflitos e os impactos das mudanças climáticas são hoje
as principais causas da fome no mundo. No entanto, a fome também tem aumentado
onde a economia desacelerou ou contraiu, particularmente em países de renda
média na América Latina, África e Ásia.
Para enfrentar essa situação, a implementação e o fortalecimento dos
programas de proteção social são muito importantes. É imperativo atuar em três
frentes: 1- construir a resiliência das comunidades rurais em áreas de
conflito; 2- promover a adaptação dos agricultores familiares aos impactos das
mudanças do clima; e 3- mitigar os impactos da desaceleração econômica por meio
de redes de segurança social e políticas públicas, como os programas de
alimentação escolar baseados em compras locais de alimentos da agricultura
familiar.
Nos últimos anos, o Brasil obteve atenção mundial com o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar. Um dos pilares do
programa foi justamente um marco legal: uma lei nacional exigindo que pelo
menos 30% do orçamento para a alimentação escolar fosse utilizado para comprar
produtos da agricultura familiar.
Tal medida oferece um ganho triplo. Em primeiro lugar, garante a boa
qualidade dos alimentos oferecidos aos alunos em instituições públicas, além de
incentivar o consumo de alimentos frescos e saudáveis. Em segundo lugar, abre
mercado e proporciona de aumento de renda para os agricultores familiares. Por
fim, promove o desenvolvimento da economia local. O sucesso do PAA no Brasil
despertou interesse em outros países. Abordagem muito semelhante foi
implementada em pelo menos cinco países africanos (Etiópia, Malawi, Moçambique,
Níger e Senegal).
Outro atributo fundamental da agricultura familiar é a produção de
alimentos saudáveis por meio de práticas que preservam o meio ambiente e a
biodiversidade. De fato, a agricultura familiar apresenta-se como opção mais
receptiva ao novo padrão produtivo requisitado por um ambiente que não tolera
mais desmatamento, o uso intensivo de água, o esgotamento do solo e as emissões
elevadas de gases de efeito estufa. Por exemplo: 40% da humanidade já vive sob
regime de estresse hídrico, proporção que poderá aumentar para dois terços até
2050, em meio a uma espiral de eventos climáticos extremos.
O horizonte do desenvolvimento agrícola será empurrado cada vez mais
pelo imperativo de associar o ganho de produtividade ao requisito da
sustentabilidade e, de forma urgente, à contrapartida de políticas públicas que
universalizem o acesso a uma dieta saudável, o que só será possível se vier
combinado a ganhos de resiliência agrícola e de reordenação econômica e social
diante da crise climática.
Não há bala de prata que remeta automaticamente a esse equilíbrio em
movimento. Ao condensar boa parte das contradições desse novo período, no
entanto, a agricultura familiar credencia-se como um protagonista pertinente do
jogo, desde que ancorada por um amplo “aggiornamento” de políticas agrícolas
locais e da ação cooperativa internacional.
*Diretor-geral
da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). Artigo
publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 14 de junho de 2019.
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