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Tenha modos e coma com as mãos

Tenha modos e coma com as mãos
Julie Sahni se lembra direitinho da primeira vez em que teve que comer com talheres. Professora de culinária e autora de vários livros de receitas, ela foi criada na Índia, comendo da maneira tradicional, com a mão direita _ só que, na faculdade, ganhou um concurso de dança que a levaria à Europa. E aí, como comer?
A resposta foi um curso de imersão de três dias sobre a etiqueta ocidental à mesa, que foi desde a sopa (não bata com a colher no prato), passando pelas ervilhas (espete-as com o garfo sem jogá-las no colo do vizinho) para finalmente chegar ao escorregadio ovo cozido. Julie, que tem 66 anos, aprendeu a usar garfo e faca, mas nunca foi fã deles.
"Comer com a mão evoca uma emoção muito grande", ela confessa, "e aquece meu coração; é uma gentileza, quase um carinho. Usar um garfo na tradição indiana é impensável. É considerado quase como uma arma".
Comer com as mãos é muito comum em várias partes do mundo, incluindo várias regiões da Ásia e quase toda a África e o Oriente Médio, mas até pouco tempo seria impossível descobrir algum restaurante nos EUA, principalmente entre aqueles que oferecem pratos que variam de US$ 20 a US$ 30, que encorajasse o uso das mãos. Hoje, vários chefs famosos estão convidando os clientes a sujá-las porque acreditam que isso aumenta a conexão sensual com a comida e diminui a formalidade de lugares mais sofisticados.
Quando o chef Roy Choi corre os olhos pelo movimentado salão do A-Frame, seu restaurante em Los Angeles, só há uma coisa que o deixa de mau humor: os talheres.
"Eu vejo o pessoal cortando kalbi (costeleta de porco coreana) como se fosse bife, e para mim é como se alguém arranhasse um quadro negro", ele confessa.
No A-Frame, cujo cardápio eclético foi inspirado pela cozinha havaiana, os talheres são opcionais _ e embora cada mesa tenha uma cesta com talheres, quando chega a costeleta de porco grelhada ou a a salada, os garçons avisam os clientes que podem perder, e muito, se comerem com garfo e faca.
"Aí, começam as perguntas, tipo: 'Sou obrigado?', ou: 'Preciso fazer mais alguma coisa?'" Choi comenta, "mas assim que a gente responde 'sim' ou 'não', o pessoal mete a mão".
Ele pensou que talvez tivesse que oferecer lavanda, como muitas casas fazem em outros países, mas a comilança com as mãos provou ser muito mais organizada do que esperava.
"Você come com convicção e paixão quando usa as mãos", Choi filosofa. "Espero que as pessoas baixem a guarda um pouco, possam esquecer algumas regras de etiqueta e se conectem ao alimento, como fazem os animais."
De fato, a etiqueta é essencial em muitas culturas que usam as mãos para comer e a arte e o ritual da prática são razões por que tanta gente a aprecia. A lavagem das mãos geralmente é o primeiro passo; nas comunidades muçulmanas, a oração de agradecimento vem em seguida. Só então é que a pessoa pode comer, geralmente usando só a mão direita.
E engana-se aquele que acha que comer assim é sempre mais fácil: dependendo da região, principalmente na Índia, é mais educado usar o polegar, o indicador e o dedo médio e deixar apenas as duas primeiras juntas tocar a comida.
Os detalhes diferem de um lugar para outro, mas geralmente o arroz ou o pão são usados para levar os outros alimentos à boca _ no caso dos indianos, há o roti e o naan; dos etíopes, o injera e, no Oriente Médio, o pita. Os africanos da região central e do sul transformam tubérculos ou milho numa massa viscosa, como o fufu ou o ugali, da qual você tira um pedaço e usa como um tipo de pá comestível.
Julie se recusa a comer comida indiana com garfo e faca, mesmo nos restaurantes mais formais de Nova York.
"Não quero nem saber se estou toda arrumada, se os outros estão comendo com talheres, se o vinho custa US$ 80", ela diz. "Comer com a mão é essencial."
Por Sarah Digregorio, The New York Times News Service/Syndicate

Amy Dickerson/The New York Times
E quando ela leva a mão direita para se servir, os outros se mostram felizes em poder acompanhar _ mas nem sempre foi assim. Ela se lembra de um restaurante indiano em Manhattan que, nos anos 70, tinha uma divisão extraoficial para indianos e não-indianos porque, segundo os donos, os indianos não queriam que os não-indianos os vissem comendo com as mãos e os ocidentais também não queriam ver isso.
Hoje, o escritor Amitav Ghosh diz que não vai a restaurantes indianos em Londres e Nova York porque ninguém encoraja o hábito de comer com as mãos _ pelo contrário.
"Esse aspecto essencial da gastronomia é visto como um tipo de constrangimento", ele reclama.
Nos EUA, a maioria dos restaurantes, com exceção dos etíopes, não proíbe a prática, mas também não a encoraja.
Um estabelecimento em Manhattan que incentiva o hábito é o luxuoso Tulsi, de Hemant Mathur. Ao servir o curry de cabrito com roti ou cozido de grão-de-bico com pão, os garçons avisam aos clientes que os pratos serão mais bem saboreados se comidos com as mãos.
Nos restaurantes Fatty Crab e Fatty 'Cue, também em Nova York, o chef Zakary Pelaccio oferece talheres, mas espera que a natureza de suas especialidades _ como carne de caranguejo ao chili e churrasco _ sirva de inspiração para os clientes usarem as mãos. Defensor do conceito de que o tato é parte integral da boa mesa, ele come praticamente tudo com elas (menos sopa, obviamente) _ e até escolheu o título de seu novo livro de receitas baseado na prática: "Eat With Your Hands" ("Coma com as mãos", em tradução livre), que será lançado em abril.
"Eu como com as mãos hoje não só porque seria uma pena permitir que os talheres me atrapalhem", Pelaccio escreve, "mas porque a prática se tornou uma filosofia de vida, uma metáfora".
Em Los Angeles, o Bistronomics, restaurante pop-up dentro do Breadbar, introduziu um cardápio que não requer talheres no ano passado. Ao preço fixo (US$ 65), criado pelos chefs Jet Tila e Alex Ageneau, inclui pratos como croquetes de bacalhau com purê de abobrinha e costeletas de cordeiro grelhadas com confit de cenoura. A dupla pretende repetir a dose em 2012.
"Ele cria um ambiente mais social", explica Jet, que cresceu em Hollywood. "Traz de volta a infância e parece melhorar o astral do salão."
Uma pequena parte desse princípio chegou até a Casa Branca. Quando o chef nova-iorquino Marcus Samuelsson preparou o jantar para o primeiro-ministro da Índia, em 2009, incluiu pão naan e de milho para serem mergulhados numa seleção de molhos, prato raríssimo nesses eventos.
"O que pode ser melhor do que pessoas que não se conhecem, de várias partes do mundo, partindo o pão juntas?", ele questiona.
De fato, Samuelsson espera que, conforme a alta gastronomia for evoluindo nos EUA, o uso dos talheres se torne cada vez mais opcional.
"Imagino que vá chegar o dia em que um restaurante quatro estrelas use talheres, mas não para todos os pratos", ele sonha. "Ótimo, porque afinal o que é bom para os europeus não é necessariamente bom para todo mundo."

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