Não é só a Praça dos Três Poderes que está conflagrada em razão da crise entre Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal. Os ânimos estão exaltados também na sede do Ministério Público Federal, a 2 km dali, onde uma rebelião contra o comandante da instituição, o procurador-geral da República Augusto Aras, está prestes a acontecer. Um grupo de procuradores trabalha para convencer o Congresso a aprovar o mais rápido possível uma proposta de emenda constitucional que torne obrigatório ao presidente da República o respeito à lista tríplice para a escolha do chefe da instituição; outra ala do MPF busca construir com parlamentares uma alternativa baseada no artigo 52 da Constituição, que diz que o Senado pode interromper o mandato do procurador-geral e exonerá-lo por maioria absoluta dos votos, caso seja constatado crime de responsabilidade. O lobby pela primeira alternativa é público. Um abaixo-assinado está circulando entre membros do MP. Já a exoneração de Aras ainda está sendo perseguida de forma discreta.
O estopim da revolta foi o posicionamento do procurador-geral da República contra o inquérito do Supremo que investiga a existência de uma rede de disseminação de fake news e ameaças a ministros da Corte Superior. No bojo desse inquérito, a Polícia Federal realizou, nesta quarta-feira (27), 29 ordens de busca e apreensão em endereços de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Inconformado, Aras pediu no mesmo dia a suspensão do inquérito ao STF, alegando que o MP não havia concordado com as buscas. A questão é que, no final de outubro de 2019, pouco depois de assumir o cargo, Aras havia sido favorável ao prosseguimento da investigação. Com isso, contrariou um parecer da antecessora, Raquel Dodge, que considerava inconstitucional o STF abrir um inquérito, investigar e ainda julgar o crime de que a própria Corte teria sido vítima. Nesse movimento, Aras não só legitimou a ação do STF, como passou a participar dela.
Com a ofensiva do Supremo aos sites bolsonaristas, o procurador-geral mudou de postura. Parte significativa dos membros do MP não engoliu a atitude. Considera que ele está desmoralizando a instituição para atender aos interesses particulares do presidente. E não só: nos bastidores, já começam a resistir às ordens do chefe. Na quarta-feira, por exemplo, nenhum dos procuradores que normalmente auxiliam Aras na redação de suas peças aceitou escrever a manifestação enviada ao Supremo pela suspensão das investigações. A tarefa coube a uma assessora jurídica do gabinete. "Ele teve a oportunidade de fazer o certo e não fez. E agora está fazendo o certo pelos motivos errados", me disse um dos membros da categoria, ecoando a indignação reinante.
O inquérito das fake news vem apenas jogar água na fervura de uma gestão tumultuada internamente por desconfiança e tensão. A relação entre Aras e sua equipe, principalmente os procuradores que trabalham na investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, vem se deteriorando progressivamente. Desde que a investigação começou, Aras rejeitou vários pedidos de diligências apresentados pelos subordinados. Um desses pedidos era para que a Justiça do Rio compartilhasse com a PGR os autos da operação Furna da Onça, que apurou o caso das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Foi nessa investigação que surgiu o relatório de inteligência financeira do Coaf apontando desvios praticados por Fabrício Queiroz, assessor de Flavio Bolsonaro. Uma das questões que o inquérito da PGR sobre Bolsonaro visa responder é justamente se houve ou não vazamento de informações da Furna da Onça, conforme afirma Paulo Marinho, um ex-aliado de Bolsonaro. O vazamento teria sido a causa da demissão de Queiroz, entre o primeiro e o segundo turnos. Os procuradores queriam checar o conteúdo e os movimentos da ação, mas Aras não deixou.
Nesta semana, depois que o jornal O Globo publicou que os procuradores enxergavam evidências de crime de responsabilidade de Bolsonaro nas falas do famigerado vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, a PGR os pressionou a assinar uma nota redigida pela Secretaria de Comunicação da instituição, contestando as informações da reportagem. Mais uma vez, os membros da equipe se recusaram a fazê-lo. Na mesma manhã em que a reportagem foi publicada, o secretário-geral do Ministério Público, Eitel Santiago, declarou à CNN Brasil não ver sinal de crime no vídeo. A fala de Santiago, um procurador-aposentado que ocupa funções exclusivamente administrativas na PGR – e que, nas últimas eleições, foi candidato a deputado federal pelo PP, apoiando Bolsonaro – soou como um recado de Aras não só ao presidente da República, como também aos próprios membros do MP. Na sede da PGR, ninguém acredita que Aras vá recomendar que o presidente seja processado por interferir politicamente na Polícia Federal, como afirma o ex-ministro Sergio Moro.
Tal convicção ficou ainda mais clara com a visita inesperada de Bolsonaro à PGR, na última segunda-feira, durante a posse de um novo procurador-chefe dos direitos do cidadão. O presidente, que participava da posse por videochamada, se convidou para ir ao Ministério Público, onde cumprimentou procuradores e posou para fotos. No dia seguinte, a Polícia Federal foi às ruas numa operação contra o governador do Rio, Wilson Witzel, inimigo político do presidente da República. As ações de busca e apreensão foram feitas a pedido de outra assessora-chave de Aras, a subprocuradora Lindôra Maria de Araújo – que analisou as solicitações da Polícia Federal com celeridade atípica. Apenas para citar um caso, os inquéritos contra o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), por suspeita de receber dinheiro no caixa dois das empreiteiras OAS e Odebrecht, ficaram desde setembro esperando manifestação da PGR. O caso da OAS só foi desarquivado há poucos dias. O da Odebrecht ainda espera uma definição. Notória defensora de posturas à direita do espectro ideológico, Lindôra é próxima de Flavio Bolsonaro. Na semana passada, atendeu a um pedido do senador para investigar uma denúncia de que outro inimigo político, o governador João Doria, estaria inflando as estatísticas de mortes causadas pelo coronavírus no estado de São Paulo.
Procurado pela reportagem, Augusto Aras revidou, por meio de sua assessoria de imprensa, as afirmações dos procuradores. Disse que os ataques dos membros do MPF têm a ver com a descoberta de " graves falhas" no sistema eleitoral interno da instituição e desvios administrativos que sua gestão vem apurando. "Embora tenha sido tolerante com todas as críticas baseadas em fake news em homenagem à liberdade de expressão, o procurador-geral não tolerará ofensas à sua honra pessoal e funcional e moverá as ações criminais, cíveis e administrativas cabíveis contra todos que buscarem malferi-la", disse, em nota. Ainda segundo a assessoria da PGR, a manifestação ao Supremo foi redigida por uma assessora jurídica porque os procuradores estavam ocupados, e a decisão de não redigir uma nota contra a reportagem do Globo foi tomada pelos procuradores e pela secretaria de Comunicação "em comum acordo". A assessoria de Aras disse ainda que as opiniões de Eitel Santiago não representam as do procurador-geral, e que ele tem garantida por lei autonomia para expressar suas opiniões.
Como se vê, a temperatura no Ministério Público Federal só esquenta. Ao que tudo indica, a crise institucional terá, na Procuradoria-Geral da República, um capítulo bastante tumultuado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário