1964-2014: Cinqüenta anos de dispersão

Mércio P. Gomes
Na rememoração dos 50 anos do golpe militar têm surgido diversas novas explicações sobre esse infausto acontecimento que deixou uma horrível herança para o Brasil. 

A principal delas é que o golpe não foi só militar, mas também civil. Isto é, uma parte significante da sociedade brasileira, especialmente aquela capaz de expor suas atitudes contrárias ao que estava acontecendo no país, demonstrou que não queria o tipo de governo existente e pediu aos militares para intervir. 

E eles o fizeram. Outra nova explicação é de que os primeiros quatro anos da intervenção militar não foram propriamente uma ditadura, já que o Congresso Nacional não fora dissolvido, apenas uma parte dele fora escoimada por cassação de seus direitos políticos. 

Assim, a ditadura só teria começado mesmo a partir do Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, que não somente cassou mais direitos políticos mas também proibiu uma série de direitos civis e jurídicos de todo e qualquer cidadão, dando ao governo plenos poderes para intervir em quaisquer instituições sociais e políticas. 

Uma terceira explicação revisionista é a de que a ditadura só teria valido até a chegada da Anistia ampla, geral e irrestrita, perdoando tanto os que foram cassados, quanto os que se rebelaram em forma de terrorismo político, quando os militares todos, inclusive os que praticaram atos de tortura. Assim, a partir de 1979, a ditadura acabara, a democracia não teria ressurgido, mas se re-instalara o regime de cunho autoritário, de transição à democracia, tal qual o fora nos primeiros quatro anos do golpe original (1964-68).
O curioso é que essas opiniões vêm tanto da direita quanto da esquerda. Basta exemplificar com dois historiadores respeitados na academia que frequentemente escrevem em jornais importantes, como O Globo ou Folha de São Paulo, e são entrevistados em programas de televisão.
Do lado da direita democrática ou legalista está Marco Antonio Villa; do lado da esquerda democrática ou legalista fica Daniel Arão Reis.
Chamo-os de democráticos ou legalistas porque cada um deles não ventila qualquer sentimento de querer mudanças drásticas no regime que vivemos; ao contrário, querem o aperfeiçoamento da democracia.
Os dois escreveram livros em que fazem a revisão de análises anteriores sobre o caráter da ditadura militar. Uma revisão forte é de que, independente da ditadura de 64, o Brasil tem sido sempre um país de caráter autoritário. 
A República instalada em 1889 seguiu o mesmo padrão de autoritarismo impregnado na elite brasileira, desta vez sob a égide do positivismo, ele próprio uma visão de mundo que ajudou muito a instalar o “golpe” que resultou na queda da monarquia e que ditou a visão republicana desde então.
Os positivistas não eram democráticos. Acreditavam que o povo, qualquer povo, mas em especial, o brasileiro, não era capaz de determinar seu destino. Precisava de tutores, que seriam os técnicos, os engenheiros, advogados, militares, e tal; isto é, precisamente a classe média brasileira, descendente de uma elite decaída.
Com efeito, os primeiros presidentes brasileiros foram dois marechais, ambos de origem da classe média nordestina. Depois vieram gente da elite paulista, mineira e fluminense, até surgir um verdadeiro positivista, Getúlio Vargas, da elite rural gaúcha, que liderou uma revolução proposta por segmentos da elite agrária e da classe média, e instalou, durante algum tempo, uma verdadeira ditadura de ordem positivista, com tinturas fascistas.
De todo modo, independente de qualquer partido ou segmento político-econômico, os governos brasileiros teriam sido sempre motivados e levados pelo sentimento de autoritarismo, seja disfarçado em ditadura, seja em democracia populista, seja em democracia esfuziante. Até Juscelino Kubitschek não escapou desse predicamento.
Os autores mencionados mostram que no golpe de 1964 contou com a participação de muita gente boa que depois se virou contra a ditadura. Não só os indefectíveis Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Ademar de Barros, mas até mesmo Dom Paulo Evaristo Arns e Ulysses Guimarães, para ficar em poucas citações.
Outros autores estão pesquisando agora a fase parlamentarista e presidencialista do governo João Goulart. Querem saber como o povo em geral e a classe média em particular se comportavam em relação à balbúrdia política e cultural que tomara conta do país.
Muita insegurança, talvez. Medo de que a coisa degringolasse para uma ditadura sindicalista, ou simplesmente para uma anarquia sem pé nem cabeça. Alguma coisa de incompetência administrativa, de confusão com muitas esperanças ilusórias. Daí o protesto da classe média.
Eis, portanto, para onde encaminha-se a revisão do que se sabe sobre o golpe de 64. 
Não se pode esquecer, de nenhuma maneira, que esse golpe, pelo que sabemos dos estudos do cientista político já falecido, René Dreyfuss, foi precedido em 10 anos pela tentativa de golpe sobre Getúlio Vargas, em 1954, com o escândalo construído pela mídia e por partidos até de esquerda, como o velho PCB, de que Getúlio vivia num “mar de lama”, e em especial pela extensa preparação de um golpe contra João Goulart pelo conluio entre empresários, militares e o governo norte-americano.
A revisão é necessária, sem dúvida. Mas não pode ser pelo apagamento dos outros acontecimentos. Nem tampouco pela análise das suas consequências para a sociedade brasileira como um todo.
Com efeito, o Brasil vinha crescendo em ritmo acelerado não só economicamente mas também social e culturalmente. 
A participação de camponeses no Nordeste, a luta pela educação realizada pelo governo Miguel Arraes, através de Paulo Freire, e pela criação da Universidade de Brasília, por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, a ampliação de direitos trabalhistas, inclusive o 13º salário, a tentativa de fazer uma reforma agrária e de controlar um tanto a remessa de lucros das empresas estrangeiras pela necessidade de investir no Brasil – foram conquistas fundamentais que continuam a pressionar os governos brasileiros para a nossa democracia.
O golpe de 64 foi uma drástica interrupção de um processo social de crescimento da democracia brasileira, bem como de ampliação da sociedade como um todo. 
O que veio depois pode ter trazido desenvolvimento econômico e ampliação da educação universitária, como se reconhece. Mas, quem há de dizer que essas conquistas não teriam vindo de todo modo e sem as agruras da instalação do autoritarismo como forma de governar o país.
Mutatis mutandi, e longe de comparar 1964 com o que vivemos agora em 2014, não podemos negar que a democracia cresceu e se estabeleceu com segurança, especialmente depois da Constituição de 1988. 
Entretanto, não se pode relaxar com o que temos, nem deixar de nos mantermos alertas para chamar a atenção de novos discursos anti-democratizantes, alguns de caráter raivoso, que clamam por uma volta ao autoritarismo institucional.
Se somos autoritários em nossa cultura política, é hora de nos conscientizarmos disso e continuar lutando para sobrepujar esse defeito social. Nada é congênito na vida de um povo. A sociedade, como já disse Mangabeira Unger, é um artefato humano que pode ser transformado pela consciência dos homens.

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