Todos os dias, realizamos tantos tipos de atividades diferentes e rotineiras, que acabamos praticamente nos esquecendo que caminhamos até a padaria pela manhã ou que precisamos correr para pegar um ônibus. Porém, quando se têm alguma deficiência física, mesmo as coisas que fazem parte do nosso cotidiano se tornam um esforço muito maior como, por exemplo, fugir de uma chuva de verão.
“Imagine que você não pode entrar em um carro rapidamente quando está chovendo, não consegue andar de bicicleta e boa parte do transporte público não é acessível”, propõe o site do Kenguru, um carro elétrico que quer mudar a vida de cadeirantes do mundo todo. “O transporte é um obstáculo enorme para as pessoas que usam cadeiras de rodas. Muitas vezes é demorado, fisicamente difícil, caro ou simplesmente indisponível. Isso resulta na desconexão com a comunidade, incapacidade para o trabalho e uma menor qualidade de vida”.
O produto é fruto da união do projeto do húngaro Istvan Kissaroslaki e da determinação de Stacy Zoern, uma advogada de Austin, Texas. Depois de quatro anos de busca por investidores, a dupla espera que os seus primeiros veículos adaptados para usuários de cadeiras de roda saiam da linha de montagem em cerca de 18 meses.
Parecido com o irmão mais novo do Smart Car, o veículo, batizado com a palavra húngara para “canguru”, mede cerca de 2 metros de comprimento, 1,5 metro de altura e tem uma porta traseira que abre para cima, através da qual seu proprietário pode deslizar uma cadeira de rodas até o lugar do motorista. Duas baterias elétricas o alimentam por quase 100 quilômetros, a uma velocidade máxima de 40 km/h. Envolto em um casulo de aço e fibra de vidro, o Kenguru deve dar aos cadeirantes um novo tipo de liberdade.
“Honestamente, eu tenho uma doença neuromuscular. Eu não quero correr a 100 km/h na estrada, mas eu me sinto segura indo a 40 km/h em uma rua da cidade, e isso me dá um enorme aumento na minha independência e na gama de lugares onde eu posso ir”, conta a norte-americana que há 13 anos sofreu um acidente em uma minivan adaptada para motoristas com deficiência.
Ela bateu em um meio fio com a Dodge Grand Caravan, estourou um pneu e perdeu o controle da pesada van. Suas mãos voaram o volante, sua cadeira de rodas tombou e o veículo se chocou com um poste. Ela e um amigo ficaram feridos no acidente e Stacy percebeu que a substituição do veículo não seria sensata, tanto por razões financeiras (ele havia custado US$ 80 mil, o equivalente a mais de R$ 190 mil) quanto pela segurança. “A tecnologia ainda não tinha avançado o suficiente para que eu dirigisse”, relembra.
Cerca de uma década depois, em março de 2010, Stacy estava pesquisando transporte acessível para cadeiras de roda e acabou encontrando o Kenguru. Desenhado por Kissaroslaki, que vinha testando e exibindo protótipos do modelo em feiras automobilísticas da Europa há alguns anos, aquilo era exatamente o que a advogada estava procurando. Ela bombardeou o executivo com e-mails, contudo, não obteve respostas. Na época, a recessão global estava atingindo a Europa Oriental e ele tinha acabado de descobrir que tinha perdido 2 milhões de euros de empréstimo com o colapso do banco Lehman Brothers. Stacy ligou para Budapeste. “Ele me disse: ‘Precisamos de uns dois milhões de euros, você só vai poder comprar um [Kenguru] em quatro ou cinco anos, então tenha uma boa vida’, e desligou o telefone”, conta.
Implacável, a empresária de primeira viagem recorreu a um parceiro em seu escritório de advocacia, que era um empreendedor. Stacy era um advogada de patentes que ocasionalmente assumiu casos de direitos civis de deficientes, mas não tinha nenhuma experiência empresarial. “Eu encontrei esse produto que realmente quero e descobri que eles precisam de dinheiro para colocá-lo no mercado. Você pode me ajudar?”, pediu ao colega, que concordou. A partir deste momento, começou o esforço de captação de recursos e, ao mesmo tempo, a insistência para que Kissaroslaki aceitasse a parceria. Quando o europeu cedeu, veio para os EUA, se reuniu com Stacy e foi conquistado pelo seu entusiasmo. No final de 2011, o homem mudou-se com sua esposa e os dois filhos para o Texas.
“Quando você cresce com uma deficiência, tudo é um obstáculo. Eu tenho ajuda para sair da cama pela manhã. Eu recebo ajuda para me vestir. Tenho que programar cada pausa para ir ao banheiro em momentos que alguém forte o bastante para me levantar esteja por perto. Ligar a lâmpada da minha mesa é difícil, colocar papel na impressora é difícil, e por isso você passa toda a sua vida dessa maneira”, explica Stacy.
A captação de recursos para o pontapé inicial do Kenguru não foi fácil. Levou quatro anos para construir uma rede de relacionamentos e convencer os financiadores, que incluem amigos e vizinhos (Stacy também investiu US$ 140 mil, aproximadamente R$ 335 mil). Ela, que esperava o apoio do governo para o que é um projeto sustentável direcionado aos deficientes, revela que ficou surpresa com o pouco apoio disponível, a nível federal. Quando se encontrou com o presidente Barack Obama em um evento para empresários de pequenas empresas, o parlamentar teria ficado impressionado com o projeto e dito que estava ansioso para ver os carros pelas ruas.
Apesar da falta de financiamento do governo federal, grandes fundações ou da indústria automobilística, Stacy e Kissaroslaki conseguiram levantar US$ 4 milhões, em grande parte graças à fértil cultura de start-ups existente na cidade texana. No início de janeiro, anunciaram que iriam começar a receber reservas para os primeiros Kengurus. Os carros vão custar cerca de US$ 25 mil cada, o equivalente a R$ 60 mil, porém muitos compradores podem se qualificar para receber incentivos públicos para a mobilidade e energia verde.
O primeiro modelo terá direção semelhante a de motocicletas e será adequado para motoristas que têm a força suficiente nos membros superiores para controlar o carro. Outro modelo, ainda em desenvolvimento, utilizará um joystick, como no caso de cadeiras de rodas automáticas, permitindo que muitos outros usuários possam operá-lo. Stacy terá o segundo modelo, porque a força superior do seu corpo é limitada, então vai ter que esperar um pouco mais do que a maioria para ter o carro que levou para o mercado. “Eu não vou ter o primeiro veículo, nem mesmo um dos 100 primeiros”.
Até agora, uma das partes mais gratificantes do empreendimento para Stacy são os e-mails e ligações que recebe de potenciais clientes. Ela entende melhor do que ninguém como pode ser ruim para os cadeirantes fazer tarefas simples ou se locomover na cidade. Mais frequentemente do que não, precisam contar com a bondade de amigos e familiares para acompanhá-los até alguma loja, escritório ou um café. Os prováveis clientes que entraram em contato com da empresa são de lugares tão distantes como Austrália e Oriente Médio, esperando ansiosamente sua programação de produção.
Até hoje, a advogada empreendedora já enfrentou uma longa jornada, entretanto isso não a desanima perante às perspectivas futuras. “Estou confiante”, diz, decidida. “O fracasso não é uma opção. Temos 30 investidores. Nós já arrecadamos US$ 4 milhões em todo os EUA. Tudo está alinhado para a gente, pessoalmente, como fundadores desta empresa. E ainda tenho milhares de pessoas lá fora esperando, por isso não desistimos”, comemora. [Kenguru, Nation Swell, Grist]
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