1. A violência praticada
pela polícia nos protestos é tão forte quanto a violência praticada pelo
sistema público no dia a dia
As pessoas estão protestando devido a um acúmulo de
insatisfação. Um dia, entrei num ônibus lotado, no qual um passageiro discutia
com a cobradora. Num arroubo inesperado, a cobradora disse, remetendo-se a
todos:
“Vocês,
passageiros, são um bando de cornos e bandidos”.
Ela provavelmente disse isso porque estava cansada, porque ganha
muito mal, porque anda com uma dor sem diagnóstico e não consegue vaga no SUS.
Minha mãe, aliás, recentemente ouviu de uma enfermeira de um hospital público
que ela estava com uma infecção urinária. A enfermeira entregou alguns exames e
ordenou: “Volte daqui a um mês, daí você falará com o médico sobre isso”. No
dia marcado, o cidadão de jaleco branco teve a audácia de dizer: “A senhora não
tem nada. Aquele exame não é da senhora. Sabe o que é? Às vezes, os exames se
misturam”.
Como vocês acham que uma pessoa se sente depois de uma situação
assim? Estou usando dois exemplos pessoais para reforçar o que já sabemos: a
indignação em SP abrange muito mais do que a área de transportes.
2.
As novas gerações vivem a política de um outro jeito
SÃO PAULO - BRAZIL - 4ª MANIFESTAÇÃO CONTRA O AUMENTO DA TARIFA
Os
movimentos que vemos crescer hoje em dia apontam a uma nova maneira de ver o
mundo, em que a falta de um único líder e uma única bandeira são sinais da
descentralização de responsabilidades e valorização da diversidade – uma
diversidade que abarca o risco, a incerteza, até por isso é possível encontrar
tantos perfis de manifestantes, até por isso não dá para resumir um movimento
complexo apenas com as histórias daqueles que exageram na dose e destroem
patrimônios públicos.
O mundo mudou. Mesmo. Mudou a maneira de nos relacionarmos entre
si, de nos relacionarmos com as máquinas. Nasce uma maneira de ser e de sentir
que ainda não conseguimos entender muito bem. Mais fluida, caleidoscópica,
sinuosa.
O filósofo Michel Serres vai longe nas suas reflexões, com um
olhar um tanto quanto positivo sobre o futuro:
“Temos
agora apenas motoristas, apenas motricidade; não mais espectadores, o espaço do
teatro se enche de atores, móveis; não mais juízes no tribunal, apenas
oradores, ativos; não mais sacerdotes no santuário, o templo se enche de
pregadores; não mais professores no quadro-negro, eles estão por toda a sala de
aula… E, haveremos de dizer, não mais poderosos na arena política, que estará
ocupada por quem recebia as decisões”.
3.
Ir para as ruas já é parte da mudança
Desde pequenos, aprendemos a sair em busca do “resultado” de
tudo, talvez porque na escola a gente era avaliado por provas e pontos e provas
e outros poucos pontos. Às vezes nós esquecemos que os processos que vivenciamos
são tão importantes quanto os resultados.
É notável o fato de milhares de pessoas comparecerem nos últimos
protestos e organizarem uma força-tarefa tão dedicada para compartilhar
informações sobre os fatos. Isso já é parte da mudança em estado puro. Pessoas
que nunca expressaram nenhum interesse político nas suas timelines do Facebook,
hoje se desfiaram em comentários imensos sobre o disparate da violência
policial exposta.
Tutorial Como Filmar a Revolução
Na semana passada, estive em dois
encontros realizados pelo Occupy, em Nova York. Num deles, a pauta era a
construção de um banco alternativo. Em outro, o tema era hackear a educação. Em
ambos os encontros, um ponto estava claro: o que restou de mais significativo
do movimento em Wall Street foi a comunidade de conexões tecida durante as
ocupações.
Tais atos são apenas pontos que
conectam longos processos. Protestos e ocupações são disparadores de uma
profusão de conexões entre as pessoas, entre sinapses que nunca se encontraram.
4. A indignação presente nas entranhas dos protestos é um sentimento
potente
“Eu desejo a todos, a cada um de
vocês, que tenham seu motivo de indignação. Isto é precioso. Quando alguma
coisa nos indigna, como fiquei indignado com o nazismo, nos transformamos em
militantes; fortes e engajados, nos unimos à corrente da história,
e a grande corrente da história prossegue graças a cada um de nós. Essa
corrente vai em direção de mais justiça, de mais liberdade, mas não da
liberdade descontrolada da raposa no galinheiro”, apontou o escritor e
diplomata franco-alemão Stéphane Hessel, um dos autores da Declaração dos
Direitos Humanos, no livro Indignai-vos, um
manifesto sobre a confiança no ser humano.
5. Tudo deságua na educação
Por que demoramos tanto para
transformar nossa indignação em ação? Por que demoramos tanto para sequer dar
voz para a nossa indignação? Fomos educados, pela escola e pelo mundo, a nos
adaptarmos à realidade, a seguir carreiras lineares, a substituirmos o
“conhece-te a ti mesmo” de Sócrates por um claro e hostil “esqueça-te a ti
mesmo e se torne um número na multidão”.
Os policiais seriam tão violentos
caso fossem melhor treinados? Os cidadãos seriam mais ativos no dia a dia, nem
que fosse apenas para cobrar os políticos, caso exercitassem autonomia,
criatividade, cidadania e conexão com o próprio território desde o primeiro dia
na primeira série até o último ano do ensino médio?
Esta semana, não só a notícia da
violência policial me chocou. Uma outra, compartilhada com menos alarde, soou
tão grave quanto, é uma outra forma de conjugação do verbo violentar:reduziram até 40% dos salários de
professores de Juazeiro do Norte, no Ceará, e, de quebra, ainda aumentaram a
carga horária de trabalho.
É crucial que
tratemos a educação como primordial-vital-indispensável para que a mudança em
curso atinja as raízes dos problemas. E vale lembrar que a palavra radical vem
do latim radicalis, de “raiz”. Ser radical nos nossos tempos é
transformarmos parte da indignação num movimento em busca de mais qualidade na
educação.
Para
terminar, gostaria de compartilhar com vocês um vocabulário com neologismos que
inventei para uma história de ficção, cujo ato central é uma ocupação na
Avenida Paulista. No texto, os personagens se dão conta que um novo mundo
demanda um léxico subvertido.
Compartilho estes termos para inspirar ainda mais criatividade
nos dias que virão:
horizontar
verbo algodoeiro
1. ato de expandir os próprios horizontes.
ex. eu horizonto, nós horizontamos.
despesadelar
substantivo onírico
1. engajar-se por mudanças na realidade. 2. desfigurar pesadelos concretos.
crespidão
substantivo crescente
1. momento em que duas pessoas se encaram, olho no olho.
hictopia
substantivo do futuro do presente
1. aqui é o lugar. 2. a revolução é local.
nunctopia
substantivo topográfico-temporal
1. agora é o lugar (nota: existem duas formas principais de conceber o agora:
1. desvario ilimitado desconectado de qualquer causa, desumanizamento e 2.
percepção ativa da trama (do trauma (da traça (do traço (do vasto (do
mundo)))))).
juntosamento
substantivo ativo
1. gestão coletiva minuciosamente compartilhada. 2. grupo sem líder, sem
hierarquia.
ocupologia
substantivo aquoso
1. estudos – e práticas – das diferentes formas de ocupar espaços e tempos. 2.
ciência ativa do ato de ocupar.
mundê
substantivo lacerativo
1. ferramenta usada para despregar os parafusos da máquina do mundo. 2. caás,
caés, caís, caós, caús. 3. manifestação disruptiva.
atinhonho
adjetivo trepidante
1. sonho pragmático. 2. ação nascida nas nuvens em suspensão nas mentes das
pessoas.
grex
substantivo composto
1. grupo de pessoas comprometidas com uma causa e cientes da sua incompletude
como seres humanos. 2. coletivo de indivíduos engajados.
radicá
verstantivo
1. buscar a raiz do radical. 2. radiculeiro.
horizontofágico
verstantivo ocular
1. que ou aquele que caleidoscopa sua identidade.
coletivar
verbo plural
1. transformar o individual em coletivo. * verbo apenas conjugado na terceira
pessoa do plural.
Fotos e vídeos do artigo vieram desse tumblr,
que está sendo atualizado constantemente com mais fotos e vídeos dos
manifestos.
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