Posted: 25 Feb 2021 Ter uma pequena pilha de revistas playboy em algum canto da casa
fez parte da arquitetura do século XX. A publicação não só mudou o imaginário
sexual dos homens, como inspirou vários outros ideais que - sem entrar no
mérito de serem positivos ou negativos - foram incorporados pelas
masculinidades durante décadas e décadas. Paul B. Preciado escreveu e descreveu toda essa influência da revista em vários aspectos da vida no seu mais recente livro: “Pornotopia - Playboy e a invenção da sexualidade multimídia”. E essa é a conversa de hoje. Pode ser (e é até mais
provável isso que o contrário) que você não conheça Preciado. Ele não é um cara
famoso nos jornais, nem nas redes. Porém, para muitos que estudam sexualidade e
gênero, Preciado já é um nome e uma leitura indispensável. Há quem diga que o
filósofo é o próximo Michel Foucault (e eu concordo). Dentre os seus livros mais
importantes estão o Manifesto Contrassexual e o Testo Junkie: Sexo drogas e
biopolítica na era farmacopornográfica. Numa noite de insônia, vendo uma velha entrevista de Hugh Hefner, fundador da Playboy, falar sobre a importância da arquitetura no seu império, Paul começa a investigar e mergulhar no tema, que resulta neste livro perspicaz e interessantíssimo. Livro de
Paul B. Preciado, pulicado pela editora N-1
edições. Preciado não está pensando a Playboy apenas como
uma revista de conteúdo erótico ou como uma empresa transnacional, mas como uma
parte chave da construção do imaginário da segunda metade do século XX em
diante. Construção essa que passa pela sexualidade e vai além, chegando
inclusive em tendências de arquitetura e inovações midiáticas. Hugh Hefner e as outras páginas da playboy (aquelas
que não tinham as coelhinhas) fundaram o ideal do solteiro que mora numa
caverna tecnológica e, de certa maneira, disseminaram a cultura de
realities, de exposição da vida privada e do homeoffice. [Nem este texto nem o livro são sobre
idealizar e dizer que essas mudanças foram melhores ou piores para a época, é
sobre entender que elas aconteceram.] Eu sou uma millenium dos anos 1990, brasileira
(claro) e sempre pensei na Playboy como uma revista que teve seu ápice nos
1980, 1990. A revista me soava como farinha do mesmo saco da pornochanchada,
Banheira do Gugu e a sessão privada das locadoras de filmes. A
juventude às vezes engana. Essa história começa muito antes, num mundo
recém saído da segunda guerra. A pornografia e a guerra Durante a segunda guerra, os soldados levavam consigo revistas de Pin-ups para ser o alívio eróticos entre combates. À época, as revistas eram almanaques pintados com aquarelas realistas. Exemplo dos almanaques em aquarela que traziam as
pin-ups Durante os anos da segunda guerra e de alistamento
massivo masculino, as mulheres estavam tendo maior presença nos trabalhos, na
vida pública e os EUA, sob a liderança do senador Macarthy, começaram a
uma política de retomada da disciplina combatendo a “dissidência sexual”. “Entre 1941 e 1945, mais de 9 mil homens e mulheres
estadunidenses foram diagnosticados como “homossexuais” e submetidos a curas
psiquiátricas”. (trecho do livro) Essa política foi uma perseguição brutal a
homossexuais, bissexuais, transexuais, mas seus efeitos também respingaram
sobre a masculinidade heterossexual: um “homem de verdade” dos anos 1940 e 1950
tinha de casar e formar família. A demora ou recusa ao casamento era motivo de
desconfiança para os vigilantes. “O estado voltava seus instrumentos de espionagem, vigilância e tortura contra seus próprios cidadãos, tornando o corpo o gênero e a sexualidade como expressões literais de fidelidade nacional.”(trecho do livro) Capa da primeira edição da Playboy que trazia fotos
inéditas de Marilyn Monroe Em 1953 a Playboy surge com a sua primeira edição
histórica, carregando fotos de Marilyn Monroe em roupas sensuais (preto e
branco na capa e colorida por dentro). No editorial, desponta uma
nova possibilidade de legitimar a masculinidade (heterossexual) fora do
lar suburbano e do casamento. Ser homem de 1900 a 1950, entre a primeira e a
segunda guerra - numa sociedade pautada pelo comportamento bem parecido
entre massas de uma mesma classe - era sinônimo de ser um soldado (literalmente
ou simbolicamente): o pai de família, rígido, disciplinado, que faz parte da
massa do sonho americano, que cumpre seu dever de defender a pátria e delega os
cuidados do lar a sua esposa. Nenhum modelo serve a todos os corpos e, na
tentativa de reivindicar uma segunda alternativa, “é possível ler os editoriais dos primeiros números
da Playboy como um autêntico manifesto pela libertação masculina da ideologia
doméstica. No entanto, essa liberação não consistirá, como no caso do
feminismo, no abandono da domesticidade, mas, paradoxalmente, na construção de
um espaço doméstico especificamente masculino”. (trecho do livro) Algumas das publicações mais icônicas da revista giram em torno do apartamento de solteiro, da penthouse dos sonhos que seja um espaço caseiro e íntimo para o homem heterossexual que domina seu espaço e que quer fazer dele um oásis que sirva a sua individualidade. Detalhadas descrições do apartamento ideal de
solteiro. Esse tipo de editorial arquitetônico era atualizado de anos em anos. Vamos lembrar que o nome da revista vem do seu
significado fora dela: ser um playboy é ser um “adolescente de
qualquer idade”, um homem que brinca, que joga, que se interessa por luxos,
produtos sofisticados, eventos sociais e poucos compromissos para além de si
mesmo. O ideal de "soldado" abre espaço para o
ideal de “espião” que seria cristalizado na figura de James Bond alguns anos depois,
em 1962. O espião é o homem solitário, urbano, com uma vida
dupla, cercado por brinquedos tecnológicos que, ao invés da disciplina e
rigidez, busca flexibilidade para defender seus próprios interesses em meio a
prazeres e companhias etéreas. “A cobertura de solteiro trata-se portanto de um
centro de vigilância com aparatos tecnológicos para produzir e reproduzir
ficções midiáticas. O prazer, já veremos, não será senão um dos efeitos
colaterais do tráfego contínuo de informações e imagens”. A sexualidade Playboy Preciado olha para a história como uma fotografia
panorâmica e mostra que a influência da Playboy e de seus ideias espalham
pensamentos de autossuficiência, individualismo, indisciplina e hedonismo.
Sendo assim, o erotismo, as fotos sensuais da revista, não resumem seu
impacto. As fotos seriam parte, uma consequência, desse modelo de
masculinidade que busca a brincadeira e o prazer sempre à mão, sem ter que sair
de casa ou levantar da cama. A playboy mudou o mundo masculino para além da inspiração masturbatória, mas inegavelmente, ela mudou e muito essa parte da vida (e não só de homens). Bunny Yeagger foi uma das fotógrafas mais
proeminentes da revista e responsável por ensaios icônicos com o de Betty Page Eu falei lá no começo que Preciado pode ser
considerado um novo Foucault, certo? Sem entrar em meandros muito difíceis,
queria contextualizar que essa comparação é feita por existir uma certa
complementariedade do trabalho que Foucault fez explicando a História da
Sexualidade nos anos 1970 e o que Preciado faz hoje em dia, se debruçando sobre
o sistema sexo gênero (e suas incoerências) na era da conectividade e da biotecnologia
(ou “farmacopornográfica”, como chama Preciado). A popularização e o vai-e-vem das revistas com conteúdos eróticos muda o que Foucault chamava, então, de heterotopia (hétero = distinto + topia = localidade) para criar pornotopias (utopia sexual, transportável, pós-doméstica e urbana). Heterotopias (que nada tem a ver com heterossexualidade) seriam portanto os “outros lugares”, espaços de sonho (ou de exceção) em que as realidades eram diferentes da norma: o bordel, o clube para homens, a barbearia. Acontece que com o fluxo de mídia (seja impressa ou digital) de lá pra cá, nasce então a pornotopia, o espaço do erótico que funciona em qualquer lugar, basta abrir a revista (ou o celular). “A playboy se transformaria na primeira pornotopia da era da comunicação de massas”. Ao abrir a revista, se desdobrava a separação entre público-privado: levar ao público o corpo feminino em suas representações íntimas e privadas, ao mesmo tempo que se faz privado e íntimo o uso da revista que está publicada. Pamela Anderson em um dos seus ensaios para a
revista. Comparando as fotos dos anos 1950 para as atuais, vemos como o
conceito de pornografia se atualiza a medida que o privado dos século passado
(um maiô) já não tem mais significado erótico nos anos 2000. (No sentido literal, a pornografia não está
relacionada a genitálias ou ao ato sexual em si, mas a trazer a público o que é
privado ** qualquer semelhança com as redes sociais não é mera coincidência). A playboy e o vício em masturbação Quando se fala sobre compulsão em pornografia e
masturbação, a facilidade de transportar conteúdos eróticos de lá pra cá, de
fazer com que eles sejam onipresentes em espaços públicos e privados, é um
fator associado ao vício. Se a playboy permitia isso no século passado,
agora, os conteúdos através dos celulares são ainda mais abundantes,
impressionantes, gratuitos e carregáveis, afinal, estão no celular. Esse
contexto faz com que o prazer instantâneo e individual seja extremamente fácil
de se obter e portanto, mais difícil de ser moderado ou controlado. Como bem disse o psicanalista Chrstian Dunker, em seu vídeo sobre vício em pornografia, o erotismo ou o interesse pelo erotismo não é um problema em si. O interesse é sinal de um desejo que está vivo em você e que faz parte da vida humana. O que podemos e devemos nos pergunta é: quais erotismo estamos cultivando, como estamos fazendo e por quê? (ou porque só este). Numa análise pessoal eu ainda diria que a influência da playboy sobre o vício da masturbação não está tão relacionada às fotos de seios e bundas, quanto ao ideal de autossuficiência, acomodação e mínimo esforço. Assim como Hefner passou a
vida evitando sair da cama e tirar o pijama de seda, é o medo masculino de sair
da concha, de enfrentar a rejeição, de ser vulnerável ou de não corresponder às
suas próprias expectativas (assim como outros fatores que engatilham ansiedades
e medos) que alimentaria boa parte da tendência à compulsão por um prazer
cômodo. As coelhinhas da
playboy são as garotas logo ali.
Estamos usando os anos 1950
como ponto de virada. Se, para os homens, a Playboy havia trazido algumas
novidades, para as mulheres, o feminismo e a pílula anticoncepcional mudaram
muitas outras. Garotas adiam noivados para
estudar, entram no mercado de trabalho e, com a pílula contraceptiva, podem até
pensar em iniciar a vida sexual antes do casamento. A divisão entre a boa moça
(virgem) e a mulher da vida (sexualmente ativa e puta) deixa de ser tão rígida. A playboy se vale dessa mudança de contexto ao desenvolver um dos apelos dos seus ensaios sensuais: a coelhinha do mês poderia ser “a garota ao lado, a vizinha, a colega de trabalho”... bastava uma certa perspectiva. Janet Pilgrim era
uma funcionária da área de vendas da revista e foi "descoberta" como
coelhinha do mês.
Mais uma vez, sem fazer análises morais ou de
valores, a Playboy desencadeia uma transposição da sensualidade que só era
possível no bordel para então ser possível, num jogo de mostra-esconde, em
várias casas "comuns", “de família”. Fazer da garota ao lado o ícone sexual, não foi, de
maneira nenhuma, um processo que tirou o tabu sobre as trabalhadoras sexuais.
Não. Para o ideal do playboy, convinha que o sexo estivesse a disposição logo
ali na porta, ou na janela da vizinha, mas não que essas “boas garotas” fossem
trabalhadoras sexuais, prostitutas. Não. Para o solteiro James Bond com seu belo
apartamento cheio de aparatos, o sexo pago soa até um pouco humilhante, quase
como sintoma de uma falta de habilidade. O reality e a pornotopia Se aqui no Brasil a gente conhece bem a revista, os acessórios com estampa de coelhinho e algumas produções audiovisuais da playboy, nos EUA, muito antes do PayperView, Hefner inaugurava game shows e realities na TV americana. Garotos brincavam em “disneylândias sensuais” e esse sonho era então vendido para uma massa de homens que poderiam desfrutar dessa utopia-sexual não só pela revista, mas indo a um clube ou hotel Playboy. Imagens da mansão Playboy que, ao longo dos anos,
foi se tornando reality em transmissões na televisão americana. Pensando sempre na arquitetura, Preciado mostra
como esse ideal de inverter e misturar o público/privado se refletia em algumas
casas que marcaram época na metade do século XX: paredes de vidro e ambientes
abertos refletiam a exposição da vida privada que se anunciava à época mas que
não alcançou seu ápice na playboy.
Os clubes e hotéis da playboy contavam com a icônica
gruta que, mais uma vez, faz o jogo de inversão público/privada. A piscina,
área mais aberta e ensolarada dos hotéis, no mundo playboy é subterrânea e
pouco iluminada.
O ápice de levar o privado a público se vê não só
no "erotismo' multimídia, mas BBB ou no show do eu que
fazemos todos os dias com o uso das redes sociais. Hefner e as tendências de homeoffice Hefner comandava seu império pornotópico de um jeito diferente dos engravatados que apareciam de terno em escritórios sisudos. Ele fazia questão de não sair de casa e trabalhava em um grande tapete ou sobre sua cama, vestindo pijamas de seda. Hefner trabalhando em sua famosa cama giratória |
“A separação da residência e do lugar de trabalho, que tornou possível o
uso generalizado do automóvel, era o traço dominante da vida urbana/suburbana
nos EUA depois da guerra. Atacar essa separação era, na realidade, atacar não
somente a estrutura da cidade estadunidenses como também o fordismo e sua
compreensão moral da relação entre trabalho, produção e prazer.” (trecho do
livro)
Hefner, em sua
rebeldia contra a sociedade de massificadora dos pós-guerra, foge do fordismo
e, de certa forma, inicia na playboy um certo embrião da cultura de
startups e do homeoffice, tão comum hoje em dia.
Ele leva sua casa para dentro da estrutura playboy e a empresa para dentro de casa. Permite e incentiva joguinhos e prazeres entre os funcionários (incluindo o consumo de drogas), assim como cobra deles atenção fora do horário comercial. Essa confusão de trabalho, lazer e descanso que se torna icônica com a playboy, nem sequer nos causa estranheza atualmente.
Ler Preciado tem sido
um dos gratos prazeres para mim nessa pandemia. Suas ideias são inovadoras e
ele não precisa falar difícil para ser brilhante. Suas colocações são
analíticas, perspicazes, críticas e nada moralistas.
A este ponto do texto
me cabe dizer que Paul B. Preciado não é, ele mesmo, um James Bond do topo da
pirâmide da heteronormatividade. Não, senhores.
Preciado é, digamos
assim, um agente duplo, rebelde e flexível. Em Testo Junkie você pode ler e
acompanhar (quase como um reality escrito), como Paul B. Preciado,
um homem trans, queer e que odeia os rótulos, se submete a uma
auto-intoxicação-experimentação de testosterona encurtando o “Beatriz” de sua
primeira certidão para um “B” de nome do meio (meio de um percurso).
Eu como mulher fui
muito influenciada pela Playboy. Além de ver ali um ideal de beleza, do que é
desejável para os homens, também via ali um objeto de desejo e inconformidade
porque eu queria que também estivesse disponível para mim toda aquele erotismo
a mão e que eu pudesse seguir esse ideal masculino de hedonismo e
"diversão em primeiro lugar".
Claro que todas essas
influências vem carregadas de problemas, de padronizações e ideais inatingíveis
que nós não necessariamente éramos capazes de enxergar à época.
Hoje, tomar
consciência dessas influências, dos seus significados, suas causas e
consequências é parte do processo. Entender o que nos formou é chave para
elabora o que queremos formar em nós daqui para a frente.
Agora fica aqui a pergunta: Como a playboy inpactou a sua vida, a sua construção da masculinidade e da sexualidade? Olhando pra trás, como você quer direcionar esses processos daqui pra frente?
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