Esqueleto de Ricardo III reacende debate sobre aparência e personalidade do monarca

O esqueleto de Ricardo III foi encontrado em uma cova pequena, no terreno que pertenceu a um mosteiro franciscano no século 15

Peça de Shakespeare popularizou o rei como um vilão de aparência horrível. A descrição, no entanto, tem sido alvo de discussão. A descoberta dos restos mortais está longe de resolver a questão

esqueleto
Ricardo III
Pesquisadores da Universidade de Leicester, na Inglaterra, confirmaram nesta segunda-feira a descoberta do esqueleto de Ricardo III, último monarca da casa York, morto em 1485. Apesar de ter tido um reinado curto – ele governou entre 1483 e 1485 - Ricardo III se tornou um dos reis mais famosos e controversos da história do país, tanto por causa de sua importância histórica quanto por conta da caricatura que os narradores fizeram de sua figura. O monarca foi imortalizado por William Shakespeare na peça Ricardo III, onde é descrito como um um vilão de aparência deformada, disposto a tudo pelo poder. Até hoje, no entanto, intelectuais ingleses discutiam sobre quem ele realmente era – os debates vão desde a causa de sua morte até a aparência monstruosa e pretensa tirania. A descoberta do esqueleto não responde a todas essas perguntas, mas esquenta o debate e ajuda os historiadores a montar uma imagem mais precisa do personagem.
O monarca nasceu em 1452, filho mais novo de Ricardo, duque de York. Sua família era descendente direta de Eduardo III, rei da Inglaterra no século 14, e disputava o poder do país com a dinastia Tudor, de mesma ascendência. Em 1455, a disputa se tornou uma batalha aberta, no que ficou conhecido como a Guerra das Rosas. Em meio a sangrentos confrontos, que incluíram a execução de seu pai, o irmão mais velho de Ricardo tomou o poder inglês e se tornou conhecido como Eduardo IV.
Seu reinado durou de 1471 a 1483, data de sua morte. O trono deveria ficar para o filho mais velho do rei, que tinha apenas 12 anos à época. Nem bem a criança se muda para o palácio real, no entanto, uma manobra legal mudou a coroa de mãos. Uma corte de lordes havia declarado o casamento de seus pais inválidos, e os príncipes se tornaram herdeiros ilegítimos. Com a reviravolta, Ricardo se tornou rei, e os dois irmãos nunca mais foram vistos. 
Ricardo III enfrentou uma série de rebeliões, e morreu em batalha no dia 22 de agosto de 1485, e o trono foi parar nas mãos da dinastia Tudor. Seu corpo foi primeiro exposto em praça pública, e depois entregue a um grupo de frades franciscanos, para que cuidassem do enterro.

Os historiadores do século seguinte, alinhados aos Tudor, deram início ao trabalho de destruição de sua imagem. Ricardo III passou a ser descrito pelos artistas ingleses — entre eles o maior de todos, Shakespeare — como um dos grandes vilões da história do país, um tirano horrível e cruel, capaz de matar os próprios sobrinhos. Quando Henrique VIII, criador da Ingreja Anglicana, um dos reis da dinastia Tudor, acabou com os mosteiros no país, os registros sobre onde o corpo de Ricardo III estava enterrado se perderam — e com eles qualquer chance de reabilitar o monarca.
Estacionamento real — Essa era a situação até agosto do ano passado, quando pesquisadores da Universidade de Leicester começaram uma busca pela tumba de Ricardo III. Eles traçaram a localização do antigo mosteiro franciscano até o terreno onde se localiza hoje o prédio do Conselho Municipal de Leicester e começaram as escavações. O esqueleto do monarca não foi encontrado em nenhuma área nobre do prédio, mas debaixo do asfalto do estacionamento local.
Uma característica logo chamou a atenção dos pesquisadores: o esqueleto apresentava uma escoliose severa, ou seja, ele realmente era corcunda como diziam os historiadores. Seu corpo media 1,72 metro, alto para os padrões medievais, mas a condição certamente fazia com que ele não chegasse a essa altura. Os ossos pareciam pertencer a um homem que tinha entre 25 e 40 anos — Ricardo III foi morto aos 32.
Nesta segunda-feira, após uma série de testes científicos, os pesquisadores da Universidade de Leicester finalmente confirmaram a identidade do esqueleto. "A conclusão acadêmica da Universidade é que o indivíduo exumado em agosto de 2012 é o rei Ricardo III. É uma honra e um privilégio estar no centro de um projeto que desperte tanto interesse público. Raramente as conclusões de alguma pesquisa acadêmica são esperadas com tanta ansiedade", disse o arqueólogo Richard Buckley, um dos autores da pesquisa.

Saiba mais

RADIOCARBONO
Metodologia usada para datar materiais orgânicos. Um organismo vivo absorve carbono ao longo de sua vida e quando morre começa a perder o carbono acumulado. Esse método consiste em medir a quantidade de carbono que resta em um material orgânico para saber há quanto tempo ele morreu.
Realeza canadense — Para confirmar a identidade, os cientistas realizaram uma série de experimentos com os restos mortais. Datações feitas com radiocarbono mostraram que o indivíduo havia vivido entre a segunda metade do século 15 e o começo do século 16, o que era consistente com os relatos históricos. As mesmas medições mostraram que ele tinha uma dieta rica em proteína, com grande consumo de frutos do mar — a comida da elite da época.
Os pesquisadores também traçaram a linhagem de Ricardo III até os tempos modernos, encontrando dois descendentes vivos de sua irmã, com quem poderiam comparar o DNA encontrado no esqueleto. Um dos descendentes preferiu se manter anônimo, mas o outro foi revelado como Michael Ibsen, um carpinteiro canadense que até uma década atrás não sabia de seu sangue real.
 "A sequência de DNA do esqueleto foi comparada com a dos parentes. Ficamos empolgados em descobrir que existe uma correspondência entre o DNA da família de Ricardo III e os restos encontrados nas escavações", disse Turi King, geneticista da Universidade de Leicester.
Após a confirmação, restou aos pesquisadores começarem a desvendar os segredos que o esqueleto podia guardar. Segundo marcas em seu crânio, o indivíduo havia morrido por causa de dois ferimentos na cabeça. Um deles foi feito a espada e o outro a alabarda, na parte de trás do crânio.
O corpo contava com muitos ferimentos, entre eles marcas na cabeça, costelas e nádegas. Segundo os pesquisadores, eles haviam sido causados depois de sua morte, como modo de aumentar a humilhação de sua derrota. A posição pouco comum de suas mãos indicava que ele podia ter sido enterrado de mãos amarradas. 
A cova havia sido cavada de forma apressada, não era grande o suficiente e não existia sinal de caixão ou mortalha. O tratamento dado ao corpo do monarca era apenas um sinal dos ataques e humilhações que a dinastia Tudor iria aplicar à sua reputação no século seguinte.
Arte e política — Shakespeare escreveu a peça Ricardo III nos anos 1590, mais de um século depois da morte do personagem principal. Seu texto se baseava nos historiadores da época, e é um grande exemplo de como as mais altas formas de arte podem ser misturadas à política. Foi a partir daí que se cimentou a ideia de Ricardo como vilão, no qual a aparência horrenda apenas representava a maldade interior do personagem. 
Um trecho célebre mostra como essas duas realidades, a aparência e a personalidade, se misturavam no personagem: "(...) eu, que privado sou da harmoniosa proporção, erro de formação, obra da natureza enganadora, disforme, inacabado, lançado antes de tempo para este mundo que respira, quando muito meio feito e de tal modo imperfeito e tão fora de estação que os cães me ladram quando passo, coxeando, perto deles. 
Pois eu, neste ocioso e mole tempo de paz, não tenho outro deleite para passar o tempo afora a espiar a minha sombra ao sol e cantar a minha própria deformidade. E assim, já que não posso ser amante que goze estes dias de práticas suaves, estou decidido a ser ruim vilão e odiar os prazeres vazios destes dias." (tradução de Carlos A. Nunes)
Conforme os séculos passaram, e novas versões da peça foram sendo encenadas, o corpo de Ricardo III foi se tornando cada vez mais torcido e monstruoso. Isso perdurou até 1924, quando historiadores amadores ingleses fundaram a Sociedade Ricardo III com a intenção de mudar a forma com que o rei era retratado. Segundo os membros, o monarca havia inclusive realizado boas ações no governo, como uma reforma que incluiu o princípio da presunção da inocência no sistema judicial inglês.
Até o final do século 20, já estava aceita a ideia de que ele não era corcunda, a ponto de não ser mais interpretado desse modo em muitas versões da peça de Shakespeare. Em um filme de 1955, por exemplo, Laurence Olivier mostrava o personagem em sua versão clássica. Já em uma reintepretação de 1995, Ian McKellen representa o personagem sem a corcunda.
A atual descoberta ajuda a chegar a algumas respostas. Ela prova que o rei era, de fato, corcunda. Mas não possuía um braço atrofiado, como descrevia Shakespeare. Seu físico era magro e esguio, quase feminino, como alguns relatos da época mostravam.
O estudo, no entanto, não revela nada sobre sua personalidade. Ninguém sabe, por exemplo, se ele realmente matou os sobrinhos. Segundo os pesquisadores, a descrição do monarca como um vilão pode ser fruto do preconceito e ingorância da época, que ligava deficiências físicas ao castigo divino. "Nossas pesquisas não revelam nada sobre o caráter de Ricardo III. Mas, agora que podemos ser capazes de comprar os textos antigos com as descobertas arqueológicas, podemos acabar reescrevendo um pouco a história", diz Lin Foxhall, pesquisadora da Universidade de Leicester. Mesmo com o aparecimento do esqueleto, os ingleses ainda devem discutir bastante sobre quem realmente foi Ricardo III.

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