A ferrovia dos mistérios

 Estadão Conteúdo
Cartas da Amazônia
Paulo Augusto Vivacqua foi um dos atores principais na epopeia da construção da ferrovia de Carajás, que iria transportar o minério de ferro da Serra de Carajás, no Pará, até o porto da Ponta da Madeira, no Maranhão. O trem entrou em funcionamento em fevereiro de 1985, tornando-se o maior escoadouro de ferro bruto do mundo.

Vivacqua recebeu então uma nova missão: deixar a empresa à qual estava vinculado, a então estatal Companhia Vale do Rio Doce, e assumir a condução do projeto de outra grande ferrovia. A Norte-Sul interligaria a ferrovia de Carajás a outra grande via de escoamento de minério de ferro, mais antiga, ao sul.

Desde os anos 1940, a Vitória-Minas conduzia minério do quadrilátero ferrífero mineiro até o porto de Tubarão, em Vitória, capital do Espírito Santo, onde o engenheiro Vivacqua nasceu, de uma tradicional família capixaba.

Para realizar o novo projeto, a Vale inspirou a criação de outra estatal, a Valec (cuja denominação já diz tudo sobre sua origem), da qual Vivacqua se tornou o primeiro presidente. Ele ganhou logo o apoio do presidente da república, o maranhense José Sarney, o primeiro civil a assumir o cargo depois de 25 anos de generais indicados por seus pares e sacramentados através de eleições indiretas sob o controle dos militares e seus aliados.
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A Vale fez uma concessão aos políticos, que transformaram a Norte-Sul num manjar de corrupção, irregularidades e incompetência. Mas talvez essas características, tão discrepantes do padrão da mineradora, não deixassem de atender aos seus interesses: o avanço da nova ferrovia podia ser lento e acidentado enquanto não fosse atingida a capacidade plena das suas duas concessões ferroviárias (com duração de 50 anos), no norte e no sul do país; ou até que se tornasse recomendável uma nova estratégia, para completar a ligação entre elas.

Esse momento parece ter chegado. Desde 1987, quando começou a sua acidentada história, a Norte-Sul já engoliu mais de cinco bilhões de reais de dinheiro público. Com a aplicação de mais R$ 400 milhões para corrigir o que foi feito de errado na linha e completar os trechos inacabados ou ainda sem circulação, ela estará em condições, no próximo ano, de servir de elo entre Carajás e Vitória-Minas, além de ser útil a outras ligações na direção do litoral nordestino.

Sintomaticamente, a Vale está duplicando a capacidade de armazenagem para utilizar na plenitude o potencial de embarque de grãos e carga geral no seu porto privativo em São Luiz, tanto para estar à altura da duplicação da estrada de Carajás quanto para passar a absorver os carregamentos da Norte-Sul. A partir dela, os trens poderão usar a antiga linha que vai até Vitória.

Essa nova alternativa permitirá a economia de quatro mil quilômetros de frete marítimo para a Europa e sensíveis ganhos, através do canal do Panamá, para a China, destino cada vez mais frequente dos navios que carregam em São Luiz. Eles ganhariam um pouco mais se saíssem  de Barcarena, no Pará. Para que isso aconteça, o governo federal aprovou a inclusão do trecho de Açailândia, no Maranhão, ao município paraense, a 50 quilômetros de Belém.

Com uma diferença fundamental: esses 480 quilômetros da Norte-Sul, ao contrário de todos os outros, serão executados pela iniciativa privada e não pela Valec. O trecho foi incluído no Programa Nacional de Desestatização, criado em 1997. A Agência Nacional de Transportes Terrestres foi designada para assumir o encargo,  sob a supervisão do Ministério dos Transportes. 

Como explicar esse estranho procedimento, que discrepou do que prevaleceu e continua a ter vigência nas obras do restante da ferrovia? A explicação seria a de que a iniciativa privada se interessaria tanto por esse prolongamento que permitiria ao governo poupar seu próprio capital para completar o traçado original completo da linha, com 2,2 mil quilômetros de extensão, de São Paulo ao Maranhão.

Não foi assim em relação ao programa nacional de novas ferrovias. No mês passado, o governo teve que quebrar o ceticismo e mesmo o desinteresse dos empresários editando a Medida Provisória 618. Ela passou a dar garantias da União às suas entidades controladas e autorizou o aumento de capital da Valec (Engenharia, Construções e Ferrovias) em até R$ 15 bilhões. 

Para assegurar a rentabilidade dos novos trechos, o governo também decidiu comprar toda capacidade de carga transportada através de ofertas públicas. Acredita que a medida reforçará as licitações que serão realizadas no segundo semestre, de 10 mil quilômetros de ferrovias, incluindo o novo trecho da Norte-Sul.

Ao mesmo tempo, inibiria o "risco Valec".  A estatal foi considerada como a mais ineficiente do Brasil pelo Latin American Studies Association (Lasa), em estudo divulgado no mês passado.

Esse enorme volume de recursos que o governo aplicará na compra de tudo que tais ferrovias irão transportar  servirá como um fundo de liquidez e só poderá ser usado pela  Valec para pagar os concessionários privados. Será o suficiente para atrair para a Norte-Sul os investidores que nunca se interessaram pela ferrovia até agora?

Ou será um leilão com cartas marcadas, destinado a ser arrematado por quem já acertou com o governo assumir a extensão da ferrovia? Ou então é um arranjo para, mais uma vez, enganar os paraenses, que sempre defenderam o prolongamento de Açailândia para Barcarena?

De qualquer maneira, o que impressiona é que essas grandes obras assumem novas formas quando, vindas de outros lugares, penetram em território paraense. E aí passam a se tornar problemáticas. Depois de quase três décadas empacada na transposição da barragem de Tucuruí, a hidrovia do Tocantins agora emperrou na derrocagem do trecho a montante da hidrelétrica, que permitiria a navegação sem impedimentos até Marabá. Justamente quando a forma de construir a Norte-Sul é alterada, a menos de 500 quilômetros de Barcarena.

Talvez isso ocorra porque os paraenses não só não protestam ou adotam qualquer outro meio de se manifestar como também nem se interessam por saber o que acontece. Choca, mas não surpreende: esta é uma terra sem lideranças verdadeiras.

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