50 ANOS DO GOLPE DE 1964: Eu vi JK votar no marechal Castello para depois ser cassado (capítulo 2, final)
Publicado originalmente a 17 de outubro de 2010
Como escrevi no post anterior sobre o assunto, à semelhança de meu colega de site e grande amigo Augusto Nunes, também adquiri uma pequena coleção de presidentes ao longo da carreira. Não se trata de um grande baú, como o dele, mas, tal qual figura no título acima, uma gaveta.
E contava no post anterior como, ainda antes de me tornar jornalista – começava o primeiro ano de curso de Direito na Universidade de Brasília (UnB) –, apenas acompanhando meu pai, Arnaldo Setti, e um grande amigo dele, o advogado Léo Lynce de Araújo, meu irmão Arnaldo Augusto e eu acabamos sendo duas entre as apenas duas mil testemunhas, entre os 70,1 milhões de brasileiros de então, a presenciar, das tribunas do Congresso Nacional, a eleição indireta do primeiro presidente da ditadura militar, marechal Humberto de Alencar Castello Branco, no dia 11 de abril de 1964.
E com o voto a favor do ex-presidente Juscelino Kubitschek, então principal líder do PSD, senador por Goiás, pré-candidato a voltar ao Palácio do Planalto no ano seguinte, e a quem o regime militar viria a cassar o mandato, suspender os direitos políticos, perseguir e humilhar.
A “vacância” da Presidência
João Goulart fora derrubado por um golpe militar, mas tecnicamente, a eleição se daria para preencher a vacância do cargo.
Para quem não se lembra ou não sabe, recordo ou explico.
Deflagrado o golpe pelo comandante de uma unidade militar em Minas Gerais, general Olympio Mourão Filho, com o apoio do então governador mineiro Magalhães Pinto, da extinta UDN, o presidente decidiu viajar de Brasília para Porto Alegre, onde a opinião pública e os militares já haviam se levantado em 1961 contra a perspectiva de um golpe de Estado para evitar sua posse, após a renúncia de Jânio, sob a liderança do então governador Leonel Brizola (do velho PTB de Getúlio Vargas, não o atual), cunhado de Jango, casado com Neusa Goulart, irmã do presidente.
O chefe da Casa Civil de Jango, professor Darcy Ribeiro, informou o Congresso por ofício, lido em plenário pelo 1º secretário, senador Adalberto Senna (PTB-AC), que o presidente seguira de Brasília para o Rio Grande do Sul.
Mesmo assim, o presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade (PSD-SP), enfrentando a fúria de deputados e senadores governistas e um grande tumulto no plenário, declarou vago o cargo de presidente, uma vez que João Goulart, disse, encontrava-se “em lugar incerto e não sabido”.
Confira abaixo o clima desse momento histórico, inclusive os gritos e protestos de deputados e senadores:
A importância do PSD de JK
Os militares estavam com a faca, o queijo, a caneta e os canhões nas mãos, mas, em sua preocupação de dar tinturas supostamente democráticas ao golpe, queriam manter algumas formalidades. A eleição indireta de Castello pelo que sobrou do Congresso após cassações de mandatos e suspensões de direitos políticos era uma delas.
E, por uma questão de segurança, havia que se ter o apoio da maior bancada, a do PSD, até porque muitos parlamentares inclinavam-se a votar no general Amaury Kruel, comandante do poderoso II Exército (hoje Comando Militar do Sudeste, sediado em São Paulo). O gaúcho Kruel, amigo e compadre de Jango, havia aderido ao golpe na última hora.
JK, naturalmente, era figura-chave do PSD. Mantivera postura escorregadia no curso do golpe contra Jango, que fora seu vice (e em seguida de Jânio, até ele próprio assumir, em 1961), proferindo a célebre frase: “Estou onde sempre estive, ao lado da liberdade e da democracia”.
Conhecia Castello Branco. Mais que isso: por indicação e insistência de um amigo de Castello, Augusto Frederico Schmidt, poeta, intelectual e assessor pessoal de Juscelino quando presidente, fora exatamente JK quem havia promovido, em 1958, o agora marechal a general-de-divisão.
Como JK virou senador
Para isso, precisou contrariar seu homem forte nas Forças Armadas, o ministro da Guerra, general Henrique Duffles Baptista Teixeira Lott (que posteriormente, em 1960, seria o candidato de JK à Presidência, derrotado por Jânio). Castello chegou a visitar o presidente no Palácio Laranjeiras em sinal de agradecimento.
O ex-presidente chegara ao Senado graças a uma manobra pouco edificante. Queria um mandato, mas em 1961, quando deixou o poder, não haveria eleições para o Congresso. Elas só ocorreriam no ano seguinte. O PSD providenciou, então, a renúncia do senador Taciano de Melo, de Goiás, eleito em 1958 e que tinha mandato até 1967, de forma a abrir uma vaga que tornasse necessária uma eleição “solteira”, como determinava a Constituição de 1946. Em troca, Taciano ganhou de presente o posto de ministro (hoje denominado conselheiro) do Tribunal de Contas do Distrito Federal.
Com 84,4% dos votos
JK, de qualquer forma, dispunha da desculpa de estar em curso em Goiás, como efetivamente estava, um grande movimento popular em favor de sua candidatura, do qual participava até a adversária UDN estadual. E a eleição também seria para valer – nada parecida com a que o magnata da imprensa Assis Chateaubriand providenciara no passado, quando deu um jeito de disputar o Senado pelo Maranhão, em 1955, sem adversários.
O ex-presidente concorreu com uma figura carimbada em Goiás, o ex-delegado-geral de polícia e ex-deputado federal Wagner Estelita Campos, um dos estruturadores da Fundação Getúlio Vargas e do que é hoje o BNDES, no Rio.
Mesmo sendo favorito absoluto, Juscelino partiu para uma campanha alucinante para os recursos da época – nada de jatinhos, com estradas precárias nos fundões de Goiás, acomodações péssimas e dificuldades de comunicação –, na qual percorreu 80 cidades. Foi um massacre: obteve 145.366 votos contra 26.800 atribuídos a Estelita, ou 84,4% dos votos válidos contra 15,6%.
Dois encontros com Castello no Rio
Voltemos, então, à eleição de Castello. Em abril de 1964, com a eleição marcada para o dia 11, o marechal Castello faria no dia 6 uma peregrinação aos cardeais do PSD, em conversa intermediada por um deputado da UDN, adversária tradicional do PSD, mas seu conterrâneo do Ceará e amigo, Paulo Sarasate.
O encontro aconteceu no apartamento em Copacabana do deputado Joaquim Ramos (PSD-SC). Cabelos branco-prata e vastos bigodes da mesma cor, discretíssimo, pouco conhecido fora de seu estado, o deputado não obstante era um articulador hábil, que carregava a política no DNA.
Eu o conheci quando jovem repórter em Brasília. Pertencia à dinastia Ramos de Santa Catarina: irmão de Nereu Ramos, respeitado ex-presidente do Senado e interino da República (de 11 de novembro de 1955 a 31 de janeiro de 1956), e de Celso Ramos, governador e senador por Santa Catarina e atualmente nome de não uma, mas duas cidades do Estado – Celso Ramos e Governador Celso Ramos.
No apartamento aguardavam-no, além do anfitrião, o senador Amaral Peixoto (RJ), genro do presidente Getúlio Vargas e eterno presidente do PSD, o deputado Martins Rodrigues, pessedista do Ceará, e o deputado Sarasate. Mediante garantias genéricas sobre democracia fornecidas por Castello, garantiu-se o apoio do PSD a sua eleição.
Faltava, porém, o encontro pessoal Castello-JK. Programou-se nova reunião para o dia seguinte, 7 de abril, no mesmo apartamento. Castello chegou à casa de Joaquim Ramos acompanhado de dois coronéis.
Lá estavam Amaral Peixoto, José Maria Alckmin, deputado mineiro e ex-ministro da Fazenda de JK – legendário por sua esperteza política, e que acabaria sendo o vice-presidente figurativo de Castello –, Martins Rodrigues e o embaixador Negrão de Lima, também figura de proa do PSD, futuro governador (eleito) do extinto Estado da Guanabara. JK chegou pouco depois.
Frequentes consultas ao relógio
A conversa seria cordial, mas as frequentes consultas do ex-presidente ao relógio irritaram Castello, que comentaria depois, abismado, que JK chegou a tirar do bolso um pente e ajeitar os cabelos.
O marechal sempre negou que tivesse ido à reunião para pedir o apoio ou qualquer coisa a JK, mas um dos coronéis que o acompanharam, Affonso Heliodoro, chegou a contar anos depois, em carta ao jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, amigo de Juscelino, que, ao se despedirem, o marechal perguntou a Juscelino, a quem chamou de “presidente”:
– Então, presidente, estou aprovado para a Presidência?
JK respondeu:
– Perfeitamente, general, e com o nosso apoio.
Juscelino cumpriu o compromisso. Os militares, temerosos de sua popularidade, não. Seu mandato de senador seria cassado dois meses depois, a 8 de junho daquele 1964, e os direitos políticos suspensos por 10 anos.
Vendo aproximar-se a degola, o ex-presidente proferiu seu último e enérgico discurso no Senado cinco dias antes, a 3 de junho de 1964.
Alertando que a nação vivia “sob os efeitos do terror” e declarando-se “vítima preferida da sanha liberticida” do regime, disse JK: “Sinto uma perfeita correlação entre minha ação presidencial e a iníqua perseguição que me estão movendo”.
Ouça um trecho desse discurso histórico e veja imagens de JK abaixo:
Cara feia dos seguranças e gabinetes vazios
A história termina aqui. Até hoje não consigo saber direito como é que meu pai, seu amigo Léo Lynce de Araújo, meu irmão e eu fomos parar nas superlotadas galerias da Câmara. Meu pai partiu em 2003, o dr. Léo também se foi. Meu irmão, mais novo do que eu, nos deixou precocemente, em 2012. Não tenho mais a quem perguntar.
Meu irmão se recordava de que o dr. Léo, conceituado advogado de Goiás que trabalhara com nosso pai no extinto Instituto Brasileiro do Café (IBC), no Rio, e muito tempo depois seria diretor da Caixa Econômica Federal, recomendou que fôssemos todos de terno e gravata, inclusive seu interlocutor, que apesar de não haver completado 16 anos já media perto de 1,90m.
Por algum sortilégio, o dr. Léo conseguiu estacionar o carro com que nos levou em uma das garagens do Congresso. E, mesmo diante de eventuais caras feias e tentativas de pedir credenciais de parte dos seguranças da Câmara e do Senado enquanto íamos em busca das galerias, recomendava:
– Façam de conta que não viram, vamos em frente, vamos em frente!
Revendo mentalmente aqueles momentos, imagino que talvez ele tivesse recebido algum tipo de salvo-conduto do senador de Goiás José Feliciano, também amigo de nosso pai. Recordo-me vagamente de que cortamos caminhos por gabinetes vazios até nos acomodarmos, os quatro, sabe Deus como, nos pequenos assentos das galerias. O plenário, lá embaixo, regurgitava.
Dá para esquecer?
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