No inquérito, eles foram acusados de violência em manifestações e de planejar explosões na final da Copa do Mundo
HUDSON CORRÊA E ANA LUIZA CARDOSO
26/07/2014 10h01 - Atualizado em 26/07/2014
Na noite de sábado 28 de junho, quando o Brasil comemorava a vitória da Seleção em partida contra o Chile definida nos pênaltis, em Belo Horizonte, uma bolsa com 20 morteiros e 178 ouriços – peças arredondadas com pontas de ferro – foi apreendida pela polícia no Rio de Janeiro. O material explosivo foi encontrado por volta das 20 horas, num canteiro da Praça Saens Peña, área comercial populosa no bairro carioca da Tijuca. Dias antes, 150 manifestantes tinham quebrado uma agência bancária, incendiado lixeiras e atirado coquetéis molotov contra a Tropa de Choque da Polícia Militar no mesmo bairro. A sacola misteriosa ainda não tinha dono, mas ele apareceu no dia seguinte à apreensão, quando uma escuta telefônica autorizada pela Justiça flagrou uma conversa da professora de filosofia Camila Jourdan com outro ativista. Aparentemente transtornada, Camila pergunta a seu interlocutor sobre as “canetas” e os “livros” perdidos e diz que não poderia “comprar tudo de novo” (leia acima). Livros e canetas, segundo a polícia, são termos usados pelos ativistas para se referir a artefatos explosivos.
O episódio disparou um enredo policial que, como no filme Pra frente, Brasil, evoluiu à medida que a Copa do Mundo avançava. Na quinta-feira, dia 10, dois dias depois da derrota de 7 a 1 para a Alemanha, o juiz Flavio Itabaiana de Oliveira Nicolau emitiu os primeiros mandados de prisão temporária contra Camila Jourdan e mais 22 manifestantes – entre eles a ativista Elisa de Quadros Sanzi, conhecida como Sininho. Nos dias que se seguiram – especialmente no sábado, dia 12, quando o Brasil perdia a disputa do terceiro lugar para a Holanda –, as prisões foram efetuadas. Com base na investigação, a Justiça e o Ministério Público temiam que houvesse violência num protesto marcado para o dia 13, data da final da Copa do Mundo entre Alemanha e Argentina.
As detenções provocaram uma onda de repúdio. A Anistia Internacional criticou a ação. Tudo piorou no dia 18, quando, esgotado o período de prisão para averiguações, a Justiça decretou a prisão preventiva dos acusados. As críticas eram de dois tipos. De um lado, militantes desqualificavam o inquérito – as provas não vieram a público, devido ao segredo de Justiça. “Li uma parte do inquérito e estou horrorizado. Nunca vi nada tão malfeito e precário”, disse o deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL. Ele é citado no inquérito por causa de sua proximidade com Sininho, embora não haja nenhuma acusação contra ele. De outro lado, ativistas começaram a chamar os detidos de “presos políticos” e a dizer que o Brasil passara a viver num “estado de exceção”. O auge de tal alegação surgiu quando a advogada Eloisa Samy tentou pedir asilo no Uruguai, na terça-feira passada. O asilo foi negado.
Cabe examinar as alegações dos ativistas e seus apoiadores.Trata-se de um inquérito feito às pressas? Para responder a essa pergunta, é útil entender o objetivo e a história da investigação. O objetivo, segundo a delegada Renata Araújo dos Santos, que conduziu o inquérito, era investigar pessoas que “se aproveitaram do movimento popular (...), fruto de insatisfação geral de um povo, e se organizaram para cometer diversos crimes (dano ao patrimônio público e privado, lesão corporal, ameaça, furto, roubo, desobediência, desacato, homicídio), tendo como principais alvos as sedes dos órgãos públicos, patrimônios públicos, agentes de segurança pública, agências bancárias e estabelecimentos comerciais”.
As investigações da Polícia Civil do Rio de Janeiro começaram durante as primeiras manifestações violentas que se seguiram aos protestos de junho. E se ampliaram em outubro, quando um protesto de professores descambou para agressões mútuas entre policiais e manifestantes, culminando com a queima de uma viatura. Com autorização da Justiça, os investigadores da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) grampearam e-mails e celulares dos suspeitos de crimes em manifestações. A polícia começou a fazer escutas telefônicas em novembro de 2013 em seis linhas telefônicas. Oito policiais foram escalados para ouvir as conversas. Em julho deste ano, a polícia já fazia escutas de 21 investigados. Só na parte referente às escutas, o processo acumula 1.100 páginas. Quando perceberam que eram grampeados, os investigados começaram a usar menos o telefone e a combinar pessoalmente seus planos. Os investigadores partiram então para o que, na linguagem policial, se chama de “campana”. Seguiam os ativistas, passavam horas na porta da casa deles, procuravam ouvir conversas e fotografar encontros. O resultado é um processo de 3.500 páginas, a que ÉPOCA teve acesso na íntegra. Ele reúne, além das gravações e relatórios de campanas, declarações de integrantes e ex-integrantes de grupos de ativistas e agentes infiltrados. Pode-se, eventualmente, fazer críticas pontuais à qualidade de algumas provas do inquérito ou à interpretação que o Ministério Público e a Justiça fizeram delas. Mas não se pode dizer que foi um inquérito apressado, feito na correria para criar uma prisão espetacular às vésperas da final da Copa.
O inquérito ouviu 11 ativistas. Há pelo menos três testemunhas-chave: os ativistas Felipe Braz e Anne Josephine Rosencrantz e o policial infiltrado Maurício Alves da Silva. O técnico em química Felipe Braz, de 30 anos, participou das manifestações em junho de 2013 e conheceu Sininho no movimento Ocupa Câmara. No inquérito, Felipe afirma ter participado de uma reunião com Sininho, Camila Jourdan e o webdesigner Luís Carlos Rendeiro Júnior, conhecido como Game Over, numa barraca. Segundo ele, Sininho e Game Over insistiam na estratégia de incendiar ônibus durante os protestos. Felipe contou ainda que a casa de Camila Jourdan, no bairro carioca do Rio Comprido, foi ponto de encontro para reuniões dos manifestantes. Ele relatou ter visto, num protesto violento do ano passado, Camila tentar coagir um manifestante a carregar uma mochila com explosivos. Segundo ele, o rapaz abandonou a mochila, depois apreendida por policiais.
Anne, de 21 anos, tem um filho de 2 anos com Game Over, mais conhecido por ser par frequente de Sininho durante os protestos. No dia 11 de junho deste ano, ela disse à polícia ter visto Sininho carregar gasolina para incendiar a Câmara dos Vereadores e ser contida nas escadas do prédio por outros manifestantes, num dos protestos do ano passado. Anne diz ter sido advertida durante os protestos de que não teria privilégio por ser “esposa de Game Over”.
Maurício é policial da Força Nacional de Segurança, subordinada ao Ministério da Justiça, em Brasília – no auge da violência nos protestos, o ministro José Eduardo Cardozo decretou que combatê-la era uma das prioridades de sua Pasta. Em março de 2014, Maurício desembarcou no Rio e se infiltrou entre os manifestantes. Para ganhar a confiança dos ativistas, usou seu celular para fazer “twitcasting”: filmar e transmitir os protestos ao vivo. Começar a ouvir confidências foi uma questão de tempo. No violento protesto ocorrido em junho na Praça Saens Pena, Maurício, segundo disse no inquérito, ouviu um ativista adepto da tática black bloc comentar: “Os caras são muito burros, erraram os policiais e acertaram um poste. Gastou um ‘molotov’ (sic) à toa...”. Em outra ocasião, ele diz que viu a advogada Eloisa Samy avisar a outros manifestantes “que estava na hora de começar a confusão”. No dia 9 de julho, Maurício revelou à polícia um plano para uma manifestação violenta no último jogo da Copa, realizado no Maracanã. Ela deveria contar com pelos menos 80 adeptos da tática black bloc de Rio, São Paulo, Salvador e Belo Horizonte.
Se os depoimentos apontam para atos ilícitos cometidos por Sininho, as escutas telefônicas e apreensões policiais trazem indícios contra Camila Jourdan. Quando foi presa, na véspera da final da Copa, a polícia afirma ter encontrado com ela explosivos, uma garrafa com gasolina, dois fogos de artifício e uma bomba caseira cilíndrica em PVC – segundo laudo do Esquadrão Antibombas da Polícia Civil, ela poderia matar. O advogado de Camila Jourdan, Marino d’Icarahy, acusa a polícia de ter “plantado” as provas contra ela.
Embora a investigação tenha sido exaustiva, o relatório apresenta falhas. Algumas informações que saíram da internet e não foram checadas – cursos que Sininho é acusada de ter feito em Cuba, por exemplo – são dadas como verdadeiras. Embora o espírito da investigação não seja político, o relatório perde muito tempo esmiuçando siglas de movimentos e a convocação de protestos pelas redes sociais. Nada disso é crime, pois qualquer um tem direito de organizar uma manifestação numa democracia. No campo das siglas, é útil saber que a maior parte dos citados no inquérito pertence à Organização Anarquista Terra e Liberdade (de que Camila Jourdan é uma das dirigentes), ao Movimento Estudantil Popular Revolucionário (onde milita Game Over) ou à Frente Independente Popular, que é chefiada por Sininho e congrega vários movimentos. O inquérito aponta que existe uma organização por trás dos protestos violentos. Não se trata apenas de revolta espontânea.
Toda a investigação foi feita legalmente, com supervisão do Ministério Público. Não houve ação da polícia que não fosse autorizada pela Justiça. Na quarta-feira, dia 23, o desembargador Siro Darlan concedeu habeas corpus aos que haviam sido presos preventivamente. Ele achou prudente determinar o recolhimento dos passaportes e condicionar viagens dos denunciados para fora do Rio a autorização judicial. O processo apenas começou. Existem acusações graves no inquérito. Os ativistas responderão em liberdade, com amplo direito de defesa.
É assim que as coisas acontecem na democracia, onde protestar pacificamente é um direito de todos. E onde usar bombas, agredir pessoas e destruir patrimônio é crime – apenas crime.
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