“A Voz do Brasil” foi criada no
governo de Getúlio Vargas, entrando no ar, diariamente, desde 22 de julho de
1935. No entanto, outro foi o seu nome de batismo: “Hora do Brasil”.
O programa
radiofônico mais antigo da América do Sul teve por primeiro apresentador
ninguém menos que o inesquecível Luiz Jatobá; sua
entrada no ar era precedida pelos acordes vibrantes e inconfundíveis da
protofonia da ópera “O Guarani”, de Antônio Carlos
Gomes.
Durante o Estado
Novo, em 1938, o noticiário passou a ter veiculação obrigatória nas emissoras
de rádio do país, sempre no horário das dezenove horas.
A ditadura de 1964,
para marcar presença, modificou- lhe o nome e o conteúdo. Em 1971, por decreto
do General Médici, a “Hora do Brasil” transformou-se em “A Voz do Brasil”, nome
que é mantido até os dias de hoje, pese sua programação haver sido modificada
no regime democrático.
Nosso ensaio focará
os homens que, emprestando sonoridade à “A Voz do Brasil” , transmitiram
vida e perenidade a ela, ganhando lugar nos corações e mentes de gerações e
gerações de brasileiros: falaremos sobre o maestro e
compositor Carlos Gomes e sobre o primeiro e magistral locutor, Luiz Jatobá.
Carlos Gomes, após conhecer a
glória, que lhe permitiu ser considerado pela crítica como o continuador de
Verdi, morreu quase na miséria, de câncer na garganta, em Belém do
Pará.
Na década de setenta,
durante a ditadura militar, Luiz Jatobá, uma
das vozes de maior prestígio no rádio e no cinema brasileiro, sofreu
perseguição política e emigrou para os EUA, até falecer, triste e solitário, em
1982. Aqueles que encarnaram a Alma e Voz do Brasil tiveram
quase um mesmo tipo de destino.
O caipira Antônio Carlos Gomes, que assinava nhô Tonico em suas
dedicatórias, nasceu em Campinas, no ano de 1836, na casa humilde de um mestre
de bandas. Destacou-se pelo estilo romântico e dramático de suas composições,
um “verismo com toques wagnerianos” como nos diria Mário de Andrade. Tornou-se,
aos trinta e cinco anos, o primeiro compositor brasileiro a reger uma de suas
obras no Teatro Scala de Milão, a imortal “Il Guarany”. Foi, sem sombra de
dúvidas, o mais importante compositor operístico brasileiro.
A vida de Carlos Gomes, entretanto, um homem simples,
verdadeiro gênio musical, foi desde o princípio marcado pela dor. Ainda
criança perdeu a mãe tragicamente assassinada. Seu pai, músico, levou uma vida
de dificuldades. É na banda do pai, que Carlos Gomes vai fazer, em conjunto com
seus irmãos, as primeiras apresentações em bailes e em concertos. O pão do
dia-a-dia, ele ganhava com o dinheiro obtido costurando calças numa
alfaiataria.
Ao completar 23 anos,
decidiu viajar ao Rio de Janeiro e matricular-se no Conservatório de Música.
Ainda costurava para manter-se; foi com a conivência de diretores da
Instituição que passou a frequentá-la irregularmente, sem pagar mensalidades.
Mas o Conservatório seria amplamente recompensado por essa ação benemérita.
Em setembro de 1861,
o Teatro Lírico Fluminense abriu-se para a primeira ópera do jovem campineiro. “A Noite do Castelo”obteve uma receptividade estrondosa
e Carlos Gomes foi levado para casa em triunfo por uma entusiástica multidão
que o aclamava sem cessar.
Dois anos após
apresentou um novo trabalho, a ópera “Joana de Flandres”, que
teve no camarote a aplaudi-lo ninguém menos que um fã entusiasta das
artes, o Imperador D. Pedro II, que já agraciara Carlos Gomes
com a Imperial Ordem da Rosa. Ao Conde d’Eu ele confidenciaria: “vejo no moço
um futuro mais promissor para a ópera em nosso país”.
Ainda aluno do
Conservatório, Carlos Gomes foi convidado a terminar seus estudos na Europa, às
expensas do Governo Imperial. O sentimento de gratidão de nhô Tonico para com o
Imperador seria por toda a vida. Foi por influência da Imperatriz, Dona Teresa
Cristina, napolitana e amante da música de Verdi, que seu destino foi a Itália
e não a Alemanha onde pontificava Wagner, e que teria sido a primeira opção do
Imperador.
Em 1866, Carlos Gomes
recebia, em Milão, o diploma de mestre e compositor. O acaso muitas vezes nos
prepara grandes surpresas. Carlos Gomes desejava ardentemente um tema
brasileiro que pudesse trabalhar na linguagem de Verdi. Certa tarde, em 1867,
passeando pelo “duomo” de Milão ouviu de um vendedor: “Il Guarany! Il Guarany!
Storia interessante dei selvaggi del Brasile!” Era a primeira tradução para o
italiano do romance de José de Alencar; o maestro
adquiriu-o imediatamente e buscou por um libretista que o transformasse
em uma peça teatral. E, assim, surgiu a ópera “Il Guarany”, com
estreia consagradora no teatro Scala, em março de 1870. O grande Verdi, na noite memorável, teria dito a
respeito de Carlos Gomes: “Questo giovane comincia dove finisco io!” (“Este
jovem começa de onde eu termino!”).
Na noite de 2 de
dezembro de 1870, aniversário do Imperador D. Pedro II, em grande gala, “O
Guarani” foi levado à cena no Teatro Lírico Provisório, no Rio de Janeiro. O
maestro viveu horas de intensa consagração e emoção. Novas apresentações se
sucederam e em uma delas o maestro ficou conhecendo o médico André Rebouças,
que o apresentaria a José do Patrocínio e a outros abolicionistas. Seriam
amigos por toda a vida. No ano seguinte, ele retornaria à Itália.
Na Itália, em 1873,
Carlos Gomes comporia e regeria “Fosca”,que é
considerada pela crítica a sua obra-prima. Posteriormente surgiriam “Salvador Rosa” e “Maria
Tudor”.
Casara-se com uma
italiana e com ela tivera cinco filhos. A fortuna, entretanto, sorrindo-lhe
profissionalmente, destruía-o pelas dores de perdas consecutivas. Um a um de
seus filhos foram morrendo em tenra idade, acompanhados em seguida pela mãe. Na
velhice restar-lhe-ia o filho Carletto, que a tuberculose também levaria na
juventude; uma única filha, Ítala, a ele sobreviveria.
Já ao final dos anos
70, Carlos Gomes, mais que a glória, perseguia a sobrevivência. Abalado por
seguidos e profundos desgostos, doente, desiludido, procurava uma situação que
lhe permitisse viver em sua pátria e ser-lhe útil. Ainda comporia a grande
ópera “Lo Schiavo”, O Escravo, levada à cena pela
primeira vez, em 27 de setembro de 1889, no Rio de Janeiro, com grande sucesso.
A ópera foi dedicada
à Princesa Isabel, que assinara a Abolição da Escravatura, no ano
anterior. Um detalhe: a encenação teatral baseava-se no século XVI,
quando o índio era o escravo dos portugueses. A inclusão do Hino à Liberdade foi a apoteose imortal dessa
maravilhosa peça dramática.
Carlos Gomes contava
permanecer no Brasil e não mais retornar à Itália. Mas a vida deu-lhe outro
destino. Estava à espera de sua nomeação para o cargo de diretor do
Conservatório de Música, quando foi proclamada a República, e seu grande amigo
e protetor, D. Pedro II, exilado. Ninguém, em respeito ou por temor dos militares, aceitou, em nenhuma das
províncias, emprega-lo. Os insignificantes da época diziam que ele abandonara a
Pátria, que desprezava até mesmo o idioma português em suas composições.
Manuel Guimarães,
também campineiro, foi o grande amigo e confidente das dores, dos desenganos e
desgostos que atormentaram os últimos anos de vida do maior músico dramático do
Brasil.
As cartas que
chegaram até nós dessa relação nos desvendam a inocência e ingenuidade do
músico: “Haverá alguém que possa odiar esse caboclo de Campinas, esse caipora?”
Quando ele falava em público não possuía poses ou atitudes estudadas; falava e
escrevia com o coração à flor dos lábios.
Em 1889, após as
exibições no Rio, ele transporta sua companhia operística para São Paulo e de
lá retorna endividado.
As elites paulistas preferiam adular os
novos donos do poder e o “positivismo nacionalista” de um Floriano Peixoto. De todas as
calúnias de que foi vítima o grande compositor, a que mais lhe doeu foi a que
se levantou sobre sua pretensa falta de patriotismo.
“Tenho sofrido ultimamente muitos
desgostos…De minha parte nada espero do futuro, porque sou muito caipira, não
fui feito para adulador”.
“Eu nunca me naturalizei italiano e por
isso fui derrotado em Pesaro, quando me apresentei como candidato brasileiro ao
cargo no Conservatório, agora dizem que não prezo meu País”.
Em 1890 vende os direitos de onze peças
musicais, inclusive, “O Guarany” e “O Escravo”, para pagamento de dívidas. Em
1891 ainda retornaria para uma turnê no Brasil.
Mas o empresário que
o contratara chegou ao ponto de não lhe dar a passagem de retorno. Sem dinheiro
e sem emprego, voltaria ainda uma vez à Itália, “pois lá ainda tinha algum
crédito com amigos”.
O filho Carletto,
tuberculoso, necessitava de tratamento médico e ele pede por carta ao compadre
Manoel que lhe penhorasse as joias que sua esposa falecida deixara.
O câncer de língua e
garganta nessa época já o fazia sofrer dolorosamente.
Todavia, as
desilusões, as decepções, a ingratidão de seus compatriotas e as dores físicas
não lhe haviam quebrado a resistência.
O combatente ainda
não tombara.
Estrearia duas óperas
no Scala de Milão, a “Condor”, com
grande êxito, uma peça mais próxima do recitativo moderno e “Colombo”, em 1892, um poema sinfônico que
passou incompreendido pelo grande público.
Em 2 de fevereiro de
1895, escreve: “ É triste, cômico, gastar até o último vintém para no fim
ficar prisioneiro de uma feroz inimiga: a Miséria!” Está de viagem marcada para
Belém do Pará:
“ No Rio não me
querem nem para porteiro de conservatório! Em São Paulo, em Campinas idem. No
Pará, porém, me querem de braços abertos…Não me querem no Sul, morrerei no
Norte… Que me importa, é tudo terra brasileira, amém!”
Finalmente, após
tanto sofrimento, em 1896, chegara-lhe um convite de trabalho. Lauro Sodré,
então governador do Pará, pediu-lhe para organizar e dirigir o Conservatório
daquele Estado.
Embarca no vapor
Óbidos para o Brasil. De passagem por Funchal, tem o prazer de abraçar seu
velho amigo, o médico e abolicionista André Rebouças, ali exilado.
Escreve:
“ Há muitos meses
perdi o paladar, meu alimento normal é pão amolecido no leite, nada
mais…acrescenta a isso a minha insuportável agitação moral. Só me bastava um
emprego, o qual acabo de conseguir no Pará.”
Em 14 de maio, foi
recebido pelo povo paraense com enternecedoras manifestações de carinho. Diante
de seu estado de saúde, pouco antes de morrer, o governo de São Paulo autorizou
uma pensão mensal de dois contos de réis, enquanto ele vivesse.
Mas o emprego e o
dinheiro tão arduamente perseguidos chegaram-lhe tarde; o pão tantas vezes
pedido já não lhe acharia a boca que o ingerisse. Uma única vez ele saiu do
hotel e foi até o Conservatório de Música, que nunca chegou a dirigir. Cercado
por amigos, com o governador Lauro Sodré à cabeceira, Carlos Gomes morreu no
dia 16 de setembro de 1896.
Dois dias depois do
falecimento, o corpo do maestro foi transferido para o Conservatório de Música.
O cortejo varou a noite de Belém.
O carro funerário foi
conduzido pelo próprio povo, numa insólita romaria anunciada pelos acordes de O
Guarani e iluminado pelas velas e archotes levados pela população ou dispostos
nas varandas das casas.
Luiz Jatobá trabalhou no
rádio brasileiro por 45 anos, numa época em que os conteúdos veiculados por
esse meio de comunicação eram os mais consumidos pelo público. Influenciou
gerações de locutores, não apenas de rádio, mas de cinema, televisão e vídeo,
que o veneraram como o dono do mais famoso timbre vocal masculino brasileiro.
Além disso, a voz
grave desse locutor, que era médico ortopedista nas horas vagas, esteve
associada, às notícias do front da Segunda Guerra Mundial, aos trailers
hollywoodianos exibidos por anos a fio nos cinemas brasileiros, assim como a
lances decisivos do futebol carioca, apresentados no Cinejornal
Canal 100, ao som introdutório do “que bonito é…”.
Luiz Jatobá também
atuou na televisão e comandou a primeira edição do Jornal Hoje, ao lado de Léo
Batista, o precursor do “Jornal Nacional” da TV Globo.
Durante a ditadura
militar, Luiz Jatobá, sofreu perseguição política e decidiu emigrar para
os EUA, onde retomou, para viver, a gravação de “trailers de cinema”, até
falecer, triste e solitário, em 1982, um século após a morte de Carlos Gomes em
Belém do Pará.
A alma e a voz de “A
Voz do Brasil”,
Carlos Gomes e Luiz Jatobá pertencem a um passado cada vez mais distante,
mas que jamais poderá ser olvidado.
Com seus esforços, suor e lágrimas,
construíram o mundo que herdamos e um programa radiofônico que se perenizou em
nossa Pátria.
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