► OS COMEDORES DE HOMENS DE "TSAVO".


 Há 124 anos, uma dupla de felinos aterrorizou os trabalhadores de uma ferrovia africana e transformou em lenda uma história assustadoramente real: a dos leões devoradores de homens de tsavo.

John Henry Patterson
John Henry Patterson

O tenente-coronel inglês John Henry Patterson conhecido como JH Patterson, engenheiro de renome, partiu para a costa leste do continente africano com a missão de supervisionar a construção de ponte sobre o Rio Tsavo, no Quênia, que daria continuidade à ferrovia de Uganda.

Mas, ao invés de encontrar apenas a rotina do trabalho e as exuberantes paisagens da África, Patterson acabou protagonizando uma das mais fantásticas experiências já vividas pelo homem na África: ele enfrentou a fúria da natureza traduzida na forma de dois leões de ferocidade incomum, que, durante nove meses e sem nenhum motivo aparente, mataram e devoraram 135 trabalhadores da estrada de ferro, até serem abatidos pelo próprio engenheiro.

Patterson chegou à cidade litorânea de Mombasa, ponto de partida da ferrovia, em março de 1898, e logo ficou fascinado pela paisagem incomum do leste da África – gigantescas savanas a perder de vista. Sua missão era dar continuidade a obra, que havia alcançado a pequena Tsavo – atualmente transformada em parque nacional.

Mas, poucos dias após sua chegada ao acampamento da obra, a aparente tranquilidade do trabalho foi quebrada por sangue e violência: dois homens estavam desaparecidos, e seus companheiros diziam, assustados, que eles haviam sido arrancados de suas tendas e devorados por dois leões. O engenheiro recebeu a notícia com desconfiança e imaginou que, na verdade, a dupla havia sido vítima de ladrões que espreitavam a obra.

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Dias depois, porém, a história se repetiria. E os desaparecimentos tornaram-se cada vez mais frequentes, e os relatos cada vez mais assustadores. Patterson ouviu a história de um outro nativo – que testemunhou seu companheiro ser levado de sua tenda por um imenso leão – e decidiu checar pessoalmente.

Ele localizou o rastro do leão e o seguiu até uma clareira, onde encontrou os restos do homem, devidamente devorado – sangue e ossos se misturavam à vegetação, enquanto a cabeça permanecia intacta, à exceção de marcas feitas pelas presas da fera. Pior ainda: os rastros indicavam não um, mas dois leões, que então passaram a atacar continuamente as tendas dos trabalhadores.

Decidido a capturar ele mesmo os leões, já que considerava a vida dos trabalhadores – e a continuidade da obra – sua responsabilidade, Patterson, passou a seguir os rastros das feras. Mas, a cada tocaia montada, geralmente em árvores, crescia sua frustração. Os leões pareciam adivinhar onde seu algoz os esperava, e sempre atacavam nos lugares mais improváveis, bem longe da mira da espingarda do engenheiro.

Os métodos de caça dos dois leões (que sempre atacavam juntos e em parceria, algo incomum entre os modos da espécie) tornaram-se tão habilidosos, e seus ataques tão precisos e bem-sucedidos, que os nativos passaram a acreditar que as feras eram, na verdade, espíritos furiosos de dois ex-chefes de tribos locais. Eles teriam tomado a forma do mais feroz dos predadores para protestar contra a construção da ferrovia em seu território. Seriam assim demônios invisíveis, batizados de a Sombra e a Escuridão, que tinham a missão de interromper o avanço do progresso para vingar o insulto.

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A cada ataque, os leões se tornavam mais audazes, não temendo tiros e chegando a devorar suas vítimas bem à vista dos outros trabalhadores, que, apavorados, que nada faziam a não ser olhar o banquete. Patterson chegou a observar um certo padrão no método dos animais: eles agarravam suas vítimas sempre pelo pescoço, mas começavam a devorá-las pelos membros inferiores, quase sempre poupando a cabeça.

Mas a engenhosidade e determinação de Patterson eram admiráveis. Corajoso, ele montou as mais estranhas estruturas na tentativa de surpreender os animais. A armadilha mais impressionante foi uma imensa jaula, dividida em dois compartimentos, onde de um lado ficavam os próprios trabalhadores da ferrovia servindo de isca humana, protegidos por barras de ferro, de espingarda em punho e prontos para fechar a jaula assim que um dos leões entrasse. Embora muitos duvidassem da eficácia da arapuca, uma das feras acabou sendo capturada após algumas noites. Mas os trabalhadores, assustados, erraram todos os tiros e só conseguiram enfurecer ainda mais o leão. A porta da jaula acabou quebrando, deixando uma fresta pela qual o animal conseguiu escapar.

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Em dezembro de 1898, as feras finalmente conseguiram seu intento: as obras da ferrovia foram interrompidas por três semanas, já que ninguém estava mais disposto a arriscar a vida – a essa altura, o número de mortos já ultrapassava os 100 operários. Todo o trabalho então se resumiu à construção de estruturas à prova de leões, numa desesperada tentativa dos nativos de não serem a próxima vítima – um trabalhador chegou a montar sua tenda em cima de uma caixa-d’água, e até alugava vagas para quem pagasse mais.

Mas Patterson não havia desistido de abater os animais e montou uma nova estrutura para tentar surpreendê-los: uma espécie de andaime apoiado em quatro frágeis estacas de madeira, que certamente poderiam ser derrubadas com uma simples patada de um dos leões. A cada noite ele aguardava a chegada dos animais, até que finalmente alcançou se objetivo. Mas não exatamente da maneira esperada – uma das feras já havia percebido a presença de Patterson e o espreitava pela densa floresta. Percebendo que havia se tornado a caça, e não o caçador, o engenheiro, atento a movimentação entre as árvores, acreditou que a hora de sua morte se aproximava.

E, assim que ouviu o som de gravetos pisados, disparou a esmo sua espingarda na direção do som duas vezes. Um rugido estrondoso ecoou por toda a selva e, nesse momento, Patterson percebeu que uma das feras havia sido atingida. Na manhã seguinte, ele e um grupo de trabalhadores foram em busca do animal e encontraram o leão morto – da ponta do focinho à ponta da cauda, ele media incríveis 3 metros! Foram necessários oito homens para carregá-lo de volta ao acampamento.
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Três semanas depois, o segundo devorador de homens seria abatido. Desta vez, Patterson ergueu uma pequena estrutura em cima de uma árvore e ficou à espreita, com sua arma em punho. Logo, sua paciência foi recompensada: o leão tentou alcançá-lo, inutilmente, e o engenheiro conseguiu acertar um tiro no dorso do animal, que imediatamente fugiu para a floresta. O caçador ainda seguiu a trilha de sangue, na esperança de encontrar o leão morto por causa do ferimento, mas a busca foi inútil, já que, por causa do solo rochoso, a trilha logo desaparecia.

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Patterson seguiu mantendo a vigília no mesmo local até que, dez dias depois de levar o primeiro tiro, o leão voltou a espreitar o engenheiro. Determinado a acabar de vez com a ameaça do devorador de homens naquela mesma noite. Patterson deixou a segurança da árvore para encarar a fera no chão. Ele esperou o animal ficar ao alcance de sua espingarda e disparou no peito. Mas, mesmo ferido, o animal conseguiu voltar para a densa selva. O caçador aguardou impacientemente até o nascer do dia, e partiu para terminar o serviço.

Foi quando ele percebeu que o leão, ainda rugindo de dor, se encontrava à sua frente. Mais um tiro, e o animal surpreendentemente ainda partiu para o ataque. Outro tiro e, novamente, o leão voltou à carga, avançando tão rápido quanto sempre. Patterson buscou então o segundo rifle, mas, para seu terror, seu companheiro de vigília havia fugido, apavorado e com a arma, deixando-o à mercê da fúria do enlouquecido animal.

Ele então correu de volta para a árvore – onde havia outro rifle -, e certamente teria sido mais uma vítima do leão se não fosse pela gravidade dos ferimentos sofridos pela fera – que a essa altura já não conseguia ser tão rápido, embora mantivesse a ferocidade. Arma em punho, Patterson disparou mais três tiros, e finalmente terminou com a ameaça dos demônios. Em fevereiro de 1899 a ponte ficou pronta.

Vinte e seis anos depois do episódio, Patterson deu uma palestra no Museu de História Natural de Chicago. Ele ainda possuía as peles dos dois devoradores de homens de Tsavo e resolveu vendê-las para o museu pela então extraordinária quantia de 5 mil doláres. Apesar do avançado estado de decomposição das peles – velhas e secas, após terem sido mantidas por Patterson durante tanto tempo -, os restauradores da instituição fizeram um extraordinário trabalho de reconstituindo os animais. Na realidade, os leões eram um pouco maiores do que como estão expostos no museu, por causa dos acertos que os restauradores tiveram que fazer nas peles.
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Até hoje, porém, a ciência não conseguiu explicar claramente os motivos pelos quais aqueles dois leões atacavam os trabalhadores da ferrovia. Mas algumas hipóteses foram levantadas. A primeira delas remete a uma peste que, na década de 1890, dizimou centenas de zebras, gazelas e outros animais que serviam de alimento para os leões de Tsavo – eles então passaram a procurar alternativas e encontraram os humanos.

Outra teoria para a tragédia de Tsavo também pode ter sua origem nas pobres práticas funerais dos nativos da região. Muitos dos trabalhadores que morriam devido a doenças ou acidentes eram enterrados sem nenhum cuidado, às vezes com partes do corpo expostas à superfície – ou nem mesmo eram enterrados. Se um leão provasse essa refeição fácil, ele certamente passaria a procurar homens, associando a figura à tranquilidade da captura. Para os caçadores africanos, porém, existe uma outra explicação: a carne humana possui um gosto levemente adocicado que é atraente para os leões. A caça, portanto, seria feita pelo prazer de provar, mais uma vez, tão apetitosa iguaria.

Há uma outra possibilidade, que ainda é aceita por boa parte dos nativos de Tsavo: a de que os leões eram realmente demônios encarnados em animais. Para eles, a palavra “Tsavo” significa “o lugar do massacre”, e nenhum lugar seria melhor para espíritos descerem à Terra numa missão de vingança. E os trabalhadores da ferrovia teriam pago com a própria vida por isso.

As feras que foram parar no cinema

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Patterson em 1907 escreveu o livro “Thw Man-Eaters de Tsavo”, que relata suas experiências na construção da ponte ferroviária sobre o rio Tsavo (1898-1899) que inspirou três filmes de Hollywood, Bwana Diabo de 1952, Killers of Kilimanjaro (1959) e o mais famoso deles, A Sombra e a Escuridão de 1996.

O filme A Sombra e a Escuridão, mostrou as dificuldades enfrentadas pelo engenheiro John Henry Patterson para eliminar as feras que conseguiram parar as obras da ferrovia. Mas é claro que estamos falando de Hollywood, onde os fatos no filme nem sempre correspondem ao que realmente aconteceu em Tsavo.

Para o papel do engenheiro foi escolhido o ator Val Kilmer. Mas, no filme, Patterson ganhou um parceiro, o caçador profissional Remington, vivido por Michael Douglas – também produtor do filme. Na verdade, ele foi criado apenas para que o nome pudesse adornar os cartazes, já que sua participação na trama é mínima e nem houve um ajudante chamado Remington.

Os leões de Tsavo em A Sombra e a Escuridão também são mostrados de forma ainda mais ameaçadora – sempre implacáveis em seus ataques e ostentando enormes jubas. Na verdade, os leões de Tsavo são caracterizados por não possuir juba. Mas, de qualquer forma, estamos falando de Hollywood.

Em 1924, Patterson vendeu as peles e os crânios dos leões para o Field Museum of Natural History de Chicago, Illinois, EUA, por 5.000 dólares, que foram empalhados . Os animais expostos no museu ficaram menores, uma vez que as peles originalmente foram preparadas para servirem de tapetes na casa de Patterson.

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Artigo publicado originalmente em dezembro de 2015

Fonte: Revista Terra, nº 69

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