Com resultados surpreendentes, penitenciária em Santa Catarina é disputada por presos de outras regiões
JOSÉ FUCS, DE JOINVILLE
03/07/2014 07h00 - Atualizado em 03/07/2014 08h06
A Penitenciária Industrial Jucemar Cesconetto, em Joinville, Santa Catarina, parece a prisão dos sonhos de qualquer detento. Conhecida como “creche”, “spa” e “colônia de férias” entre os criminosos, ela se destaca pelo tratamento humano e pela perspectiva de reintegração social que oferece, por meio da educação e do trabalho. Segundo o diretor da penitenciária, Richard Harrison Chagas dos Santos, um sargento da PM no cargo desde 2007, chegam cinco ou seis cartas por semana de presos de outras regiões de Santa Catarina e até de outros Estados pedindo remoção para Joinville. Em dezembro passado, três presos chegaram a manter dois agentes como reféns por mais de dez horas na prisão de Piraquara, no Paraná, para reivindicar a transferência para Joinville, cidade natal do trio – e conseguiram. “Até que, para prisão, não é ruim, não”, disse a ÉPOCA o preso Hercílio Natalício Borges, o Cachimbo, de 55 anos. Condenado a 20 anos por tráfico de drogas, dos quais já cumpriu cinco, ele já passou por várias outras prisões. “Aqui não é três, é cinco estrelas. É difícil achar outra prisão igual a esta.”
Instalada numa área de 12.000 metros quadrados, inaugurada em 2005 pelo então governador catarinense Luiz Henrique da Silveira, hoje senador pelo PMDB, a penitenciária de Joinville foi a primeira do Estado e uma das primeiras do país a ser administrada pelo sistema de cogestão. Foi construída e equipada pelo governo estadual, mas é administrada pela iniciativa privada. A Montesinos, que venceu a primeira licitação em 2005 e a segunda em 2011, ganhou o direito de gerenciar a unidade até 2016, em troca de R$ 26,4 milhões por ano (R$ 2,2 milhões por mês), pagos pelo governo catarinense.
Maior administradora de prisões do país (três em Santa Catarina, uma no Paraná e duas no Espírito Santo), a Montesinos é responsável pela segurança, limpeza e manutenção, além da disciplina, alimentação, material de higiene pessoal, uniformes e roupas de cama e de banho dos presos. Também fornece remédios e cuida do atendimento médico, dentário e psicológico. O comando está nas mãos de Santos, o diretor. Ele responde pela fiscalização dos serviços da concessionária e faz a ligação com a Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado, que controla as 49 prisões catarinenses, quatro delas terceirizadas, e um contingente de 18 mil presos.
A experiência bem-sucedida de Joinville se reflete nos números. De acordo com dados oficiais, 23% dos presos que já deixaram a penitenciária voltam ao crime – um terço da média nacional. A penitenciária de Joinville tem também um ambiente com menos pressão e agressividade que na maioria das prisões. Não se tem notícia de motins ou rebeliões. Quase não há relatos de fugas. Quatro presos do regime fechado, segundo Santos, fugiram desde 2006. Três foram recapturados, e o outro morreu em confronto com a polícia. O último caso de fuga ocorreu no mês passado, quando três presos escaparam da unidade. Foram recapturados em seguida. Também não há superlotação. Em decorrência da absorção de detentos transferidos de outras unidades de Santa Catarina, entre eles presos provisórios, há 20 presos além da capacidade máxima, de 646. O excedente está acomodado, de acordo com Santos, numa das áreas destinadas à triagem. “O resultado é positivo, incontestável, mas a penitenciária não pode ser uma célula isolada”, diz o secretário de Justiça e Cidadania de Santa Catarina, Sady Beck Júnior.
O êxito de Joinville tem a ver, em boa medida, com as boas condições da prisão. As celas têm, no máximo, quatro presos, acomodados em dois beliches. Quase todas têm TV, muitas de LCD, consideradas mais fáceis de vistoriar e mais difíceis de usar como esconderijo. As instalações são limpas. A comida é melhor que na média das prisões brasileiras. No último dia 21 de maio, o jantar, servido no final da tarde, tinha como prato principal uma porção de arroz e uma “minifeijoada”. Parecia apetitoso. Ao chegar lá, os novos presos costumam ser tratados de forma respeitosa pelos funcionários, segundo relato dos próprios presos. Na “eclusa”, como é chamada a área de triagem, eles cortam o cabelo e recebem o uniforme e o kit de higiene pessoal, com papel higiênico, pasta de dente, escova de dente, aparelho de barbear e sabão em pedra. Surpreendentemente, não há filas intermináveis de visitantes nos portões. As visitas podem ser feitas uma vez por semana, em qualquer dia. São agendadas com antecedência por telefone. Para as visitas íntimas, também limitadas a uma por semana, há dez quartos com cama de casal, radiorrelógio e banho quente.
O mais importante: em Joinville, dois terços dos presos trabalham e um terço estuda. Do total de 666 presos, cerca de 200 fazem pelo menos algum curso na penitenciária. Eles podem optar pelo ensino regular – 60% têm no máximo o ensino fundamental – ou por cursos profissionalizantes, como montagem de computador, eletricista, garçom e auxiliar de manutenção predial. Em geral, os cursos são oferecidos em celas adaptadas como salas de aula, onde os professores são separados dos presos por uma grade. Há também oficinas de artes e música –esta já deu origem a uma banda gospel – e curso de “danças urbanas”, como rap.
Com o apoio da associação empresarial de Joinville, 18 empresas, entre elas Tigre (de tubos e conexões) e Ciser (de parafusos e porcas), montaram ilhas de trabalho na prisão. Os presos fazem tarefas como inspeção de peças de borracha, polimento de torneiras e empacotamento de toalhas de banho. A própria Montesinos usa os presos na limpeza e na conservação da prisão. A prefeitura também oferece vagas para trabalhos em obras e serviços na cidade. No total, 384 presos trabalham em canteiros na penitenciária e outros 20 foram autorizados pela Justiça a trabalhar fora da prisão, com registro em carteira, a convite das próprias empresas. Em breve, diz Santos, mais quatro empresas se instalarão no local.
Pelo trabalho, os presos recebem um salário mínimo. Quem trabalha com carteira assinada recebe mais. Nos dois casos, os presos ficam com 75% do salário, de acordo com a legislação. Os 25% restantes ficam para o Estado, que repassa o dinheiro à penitenciária. Isso permite aos presos ajudar suas famílias e também favorece a redução da pena. A cada três dias trabalhados, eles ganham um dia de remissão. Segundo a Montesinos, os presos já obtiveram redução de 225.604 dias nas penas, desde a criação da penitenciária, há nove anos. Em contrapartida, o Estado terá uma economia de R$ 25,7 milhões.
“Jamais imaginei que um dia trabalharia e pararia de vender cocaína”, afirma o preso Ismael Buono, de 41 anos, citado na CPI do Narcotráfico, no fim dos anos 1990. Condenado a 31 anos de prisão por homicídio e tráfico de drogas, dos quais já cumpriu seis e meio, Buono foi autorizado, depois de trabalhar no canteiro da Ciser, a trabalhar como preparador de máquinas fora da unidade. Recentemente, foi promovido a uma função de liderança no setor. “Aproveitei a oportunidade para sair da ociosidade do cárcere, me qualifiquei e aprendi um trabalho”, diz.
Embora a penitenciária de Joinville ofereça condições mais humanas, em nenhum momento os presos deixam de se sentir numa prisão. A disciplina é rígida. Eles são vigiados 24 horas por um circuito fechado de TV com 52 câmeras. Ficam até 22 horas na cela e duas no pátio de cada ala, em grupos de no máximo 30. Trabalham até seis horas por dia ou estudam três. As muralhas são vigiadas por uma empresa de segurança. O bloqueador de celular funciona e impede o envio e o recebimento de mensagens, fotos e vídeos. “A preocupação é com a redução da criminalidade”, diz Santos. “Não estamos aqui para passar a mão na cabeça dos presos.”
O sucesso de Joinville levou o governo catarinense a criar mais três unidades semelhantes no Estado, em Itajaí, Tubarão e Lages. Mas a continuidade da expansão está em xeque. Uma lei sancionada em 2009 instituiu uma reserva de mercado para os agentes penitenciários. Segundo ela, o número de agentes terceirizados deve equivaler a, no máximo, 20% dos 1.800 contratados pelo Estado – percentual já atingido com as concessões atuais. Uma questão financeira também ameaça a privatização. Faltam dados precisos para comparar o sistema público à cogestão. O custo por preso na penitenciária de Joinville é de cerca de R$ 3.300 por mês, sem contar 12 funcionários estaduais que trabalham lá. Pelo orçamento destinado às prisões, as unidades privatizadas custam 50% mais caro. Mas há vários custos ocultos. “Suspeito que o sistema privado seja mais econômico pela quantidade de variáveis, mas a expansão do modelo de Joinville depende de uma avaliação precisa do custo do sistema estatal”, diz Beck Júnior.
Um exemplo que mostra bem as diferenças entre os dois modelos pode ser observado na compra de um bloqueador de celular para as prisões. Há dois anos e meio, a penitenciária de Joinville comprou um bloqueador de celular por R$ 80 mil, com recursos oriundos da fatia de 25% recebida do trabalho dos presos. Desde que o equipamento foi instalado, em 2011, não se tem notícia do uso de celulares na unidade. Em 2012, o Presídio Regional de Joinville, que fica ao lado e é gerido pelo Estado, também decidiu comprar um bloqueador. Até hoje não conseguiu instalá-lo, graças a uma denúncia de improbidade administrativa.
Mesmo com o sucesso alcançado pela penitenciária de Joinville, muita gente, à esquerda e à direita, é contra a cogestão nas prisões. A direita acha que a cogestão oferece regalias aos presos. A esquerda transformou qualquer privatização em questão ideológica e critica o trabalho dos presos como uma exploração indevida de mão de obra barata. No Paraná, uma experiência semelhante foi interrompida. No Rio Grande do Sul, foi abortada antes de começar. Beck Júnior responde: “O sistema penitenciário tem de caminhar cada vez mais para a autossustentabilidade. É uma conta que a sociedade não tem de pagar”.
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