Pare de dizer que impeachment é golpe. Você está fazendo papel
de idiota.
Aconteceu em 1376. Seu
nome era William Latimer.
Era um nobre britânico, nascido num pequeno
vilarejo em North Yorkshire chamado Scampston. Tinha um currículo
invejável.
Disputou grandes batalhas, serviu como Mordomo Real, foi nomeado
cavaleiro da Ordem da Jarreteira, a mais antiga da Inglaterra.
Naquele
fatídico ano, sua sorte mudou. Acusado por deputados do Parlamento, liderados
por um certo Peter de la Mare, então presidente da Câmara dos Comuns, de
receber propina para liberar navios capturados, reter multas pagas ao rei e de
obter dinheiro da Coroa pelo pagamento de empréstimos fictícios, foi julgado
por traição, removido de suas posições na corte e preso.
Por que estou contando tudo isso?
Porque o fato entrou para a história: Latimer foi o primeiro caso deimpeachment que se tem notícia no Ocidente.
E
abriu a porteira. De 1621 até 1679, muitos dos membros da Coroa
Britânica foram derrubados, entre eles o 1º duque de Buckingham (1626), o conde
de Strafford (1640), o arcebispo William Laud (1642 ), o conde de Clarendon
(1667) e Thomas Osborne, Conde de Danby (1678).
O mundo político ficou bem
diferente depois de todos esses eventos. Desde então, o mecanismo deimpeachment é norma presente nas
constituições ao redor do mundo. Virou padrão nas democracias para
coibir a impunidade de pretensos autocratas, um dispositivo importante no rule
of law.
No Brasil, é lei, número 1079.
Nos últimos meses, a expressão ganhou força
nos noticiários políticos. Você certamente já ouviu essa palavra mais de uma
dúzia de vezes apenas nessa semana, atrelada a uma ideia de golpe.
A associação, no entanto, é repudiada pela alta corte do país.
“O processo de impeachment é previsto na
Constituição e nas leis brasileiras. Não se trata de um golpe. Todas as
democracias têm mecanismos de controle, e o processo de impeachment é um tipo
de controle”,disse o ministro Dias Toffoli, presidente
do TSE.
“Não acredito que ela [Dilma] tenha dito que
impeachment é golpe porque ele é previsto na Constituição”,disse a ministra Cármen Lúcia,
vice-presidente do Supremo.
“A presidente pode perder o cargo, por
exemplo, em processo de impeachment, em ação penal comum, em ação de
improbidade administrativa.
Nada disso é golpe. Segundo a Constituição, a
legitimidade de um presidente depende de dois fatores: da sua investidura e do
exercício do cargo. A investidura é a voz das urnas, mas ela não é suficiente.
Há também o exercício, a presidente tem que se legitimar o tempo todo. Se se
deslegitima, perde o cargo, nos casos dos artigos 85 e 86 da Constituição”, disse Ayres Britto, ex-ministro do Supremo, que presidiu o
STF durante boa parte do processo do mensalão.
A julgar o escândalo público
toda vez que a expressão impeachment é utilizada, é possível acreditar que
essa é uma palavra pouco usual em nossas discussões em torno do posto
mais elevado do país.
Mas a ideia é falha. E basta um convite à nossa história
recente para desmascará-la.
Lula disse
há poucos dias que perdeu “várias eleições, mas não fui pra rua protestar
contra quem ganhou”. Mas o fato não procede.
Considerando plenamente
justificável e constitucional, o PT pediu oimpeachment de absolutamente todos
os presidentes eleitos
desde a redemocratização do país.
Organizou o Fora Sarney, ainda em
1988, no primeiro governo
pós-ditadura militar. Articulou o impeachment de Fernando Collor, em
1992, no primeiro governo eleito
pelo voto. Pediu o impeachment de Itamar Franco, em
1994, num breve governo de transição. Tentou o impeachment novamente contra FHC, em quatro
ocasiões diferentes em 1999, no último governo eleito antes do PT assumir o cargo.
As tentativas faziam sentido para o
partido. Para Lula, a prática decorrente do impeachment poderia ser a “salvação da lavoura”
para os problemas políticos do país. Após a saída de Fernando Collor do
poder, era
isso que ele defendia na televisão:
“Pela primeira vez na América Latina, o povo
brasileiro deu a demonstração de que é possível o mesmo povo que elege um
político, destituir esse político. Eu peço a Deus que nunca mais esqueça essa
lição.
Aliás, na Constituinte nós defendíamos uma tese de que na hora que o
povo vota num candidato a deputado ou vereador, e depois de um determinado
tempo esse vereador não está cumprindo com aquilo que era o programa durante a
campanha, que os mesmos eleitores que elegeram a pessoa poderiam destituir a
pessoa.
Se a gente conseguisse isso, seria a salvação da lavoura nesse país.”
Na Venezuela, Hugo Chávez,
antes de ser eleito (e morrer num cargo que até hoje permanece nas mãos de seu
partido), tratava o impeachment com a mesma reverência – como o
retrato fiel de uma “democracia verdadeira, mais autêntica”.
Quando questionado
se estaria disposto a entregar o cargo depois de cinco anos, por uma
emissora de televisão dedicada à comunidade hispano-americana nos Estados Unidos,
ainda em 1998, respondeu:
“Claro que estou disposto a entregá-lo. Não
apenas depois de cinco anos, eu já disse que inclusive antes. Porque nós vamos
propor aqui uma reforma constitucional, uma transformação do sistema político
para termos uma democracia verdadeira, mais autêntica.
Se, por exemplo, eu, aos
dois anos, provo que sou um fiasco, um fracasso, ou que cometi um delito, um
feito de corrupção, ou algo que justifique a minha saída do poder antes dos
cinco anos, eu estaria disposto a fazê-lo.”
Poucos meses depois, no Brasil, FHC, então
vítima de um grampo
ilegal em conversas com o presidente do BNDES, André Lara Resende, gerou
comoção nos amigos tupiniquins de Chávez.
No telefonema, revelado pela
Folha, o tucano autorizava Lara Resende a usar seu nome para pressionar um
fundo de pensão estatal a entrar em um dos consórcios participantes do leilão
de privatização da Telebrás.
A ilegalidade do grampo pouco incomodou o
partido que hoje se
escandaliza ante a legalidade dos grampos
revelados do ex-presidente Lula, que registraram conversas suas com a
presidente Dilma.
“O Congresso não pode se omitir com o nível de
detalhes da reportagem da Folha. As fitas falam por si”, disse o então líder do
PT na Câmara, José Genoino.
“O governo parece até uma quadrilha. Todo dia
tem uma pessoa ligada ao presidente envolvida em alguma falcatrua”, disse Lula
à época, avaliando como insustentável a situação de FHC e considerando
inadmissível o comportamento revelado pelo grampo.
“Não é possível assistir
calado ao governo Fernando Henrique destruir o país. Vivemos uma crise moral e
ética sem precedentes.
Por muito menos o Collor sofreu um impeachment e o Nixon
renunciou”, dizia o ex-presidente.
Aos olhos do PT, a retirada de FHC era a única
saída possível, dentro da democracia, para contornar os descasos do governo.
Tarso Genro, ex-Ministro da Justiça do governo
Lula que hoje acusa uma tentativa de golpe contra Dilma, declarou na época que
FHC deveria renunciar e propor ao Congresso uma emenda constitucional
convocando novas eleições presidenciais.
Num artigo, publicado em 1999, o
ex-governador do Rio Grande do Sul comentou a reação dos tucanos à sua
proposta:
“O governo reagiu imediatamente. Articulou uma
pesada ofensiva na imprensa —em curso—, que envolve desde manifestação do
presidente, por intermédio do seu porta-voz oficial, editoriais nos jornais
tradicionalmente alinhados e iradas manifestações de articulistas
“independentes”, até uma operação destacando parlamentares e “intelectuais
orgânicos” do bloco conservador, para produzirem artigos e concederem
entrevistas visando desconstituir a sugestão que apresentei a Fernando
Henrique.
Acusam a proposta de “desestabilizadora” e
qualificam-na de “golpista”.
Vejamos: o instrumento proposto —emenda
constitucional— é exatamente o mesmo utilizado por Fernando Henrique para
viabilizar sua reeleição. Portanto, inscreve-se nos marcos da Constituição e
não fere nenhum princípio democrático, conforme reconhecem destacados juristas
do país, como Eros Grau e Celso Antonio Bandeira de Mello.
(…) Diante desse quadro dramático, do
agravamento inexorável da crise, da frustração irremediável da generosa
expectativa da nação, dos riscos de rompimento do tecido social e da
possibilidade da opção pela “via autoritária” —tão sedutora para as elites—, a
sociedade civil precisa mobilizar-se rapidamente para sensibilizar o Congresso
e chamar o presidente à razão.”
Soar familiar? O PT não era o único a pensar
dessa forma. A deputada federal Jandira Feghali, do PCdoB, que hoje
se escandaliza com a ideia de levar Dilma ao impedimento do cargo, tratava essa como
a única possibilidade para salvar o país do governo FHC.
Quando questionada num programa de televisão se oimpeachment não
era uma ameaça à democracia brasileira, respondeu:
“Gente, eu to ouvindo aqui algumas coisas que
chamam atenção. Primeiro, esse negócio de voto de confiança no governo. Esse
governo tem mais condição de ter voto de confiança de alguém? Pedir voto de
confiança? O povo já deu.
Deu na primeira eleição, deu na segunda em cima de
uma plataforma que absolutamente não era verdadeira.
O governo não expôs pra
população no momento da campanha o que estava pra acontecer.
Foi estelionato
eleitoral aberto.
As pessoas morreram nesse país, a renda não melhorou, a
concentração de renda aumentou, por isso que nós temos que construir essa saída
também nas ruas.”
Assim, aos olhos dos governistas, impeachment nunca foi uma expressão utilizada como golpe até
a entrada do PT no poder.
Presente na Constituição, o mecanismo foi
usado para mobilizar as ruas, artistas, intelectuais, setores da imprensa
e o Congresso, para derrubar diferentes presidentes, por diferentes razões.
Dessa forma, o cenário é inescapável.
No
momento em que passarmos a aceitar impeachment como um golpe, como gritam os
governistas, bastará uma breve visita à história para atestar o óbvio: o
Partido dos Trabalhadores é a maior organização golpista que o Brasil já
teve.
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