A revista Topos & Clássicos celebrou 20 anos, razão mais do que suficiente para falarmos com o seu director Hugo Reis sobre o passado, presente e futuro da paixão que nos move.
Passaram-se 20 anos e 240 números da revista Topos & Clássicos. O que é que mudou desde então neste meio?
Vinte anos é muito tempo, mas as mudanças foram de tal modo grandes que parece terem passado ainda mais. Como em tudo na sociedade, essas mudanças deram-se devido às novas tecnologias. Em 2001, se tinhas um veículo clássico e querias ir a um encontro, o teu melhor recurso era a Topos & Clássicos, onde consultavas uma extensa agenda de eventos e te punhas ao corrente da vida dos Clubes. Hoje, para esse efeito, usas as redes sociais. Como se percebe, isso transformou totalmente a realidade da nossa publicação que, para sobreviver, teve de se transformar em algo menos efémero. Se antigamente a actualidade e a diversidade de temas eram argumentos de venda válidos, hoje o nosso sucesso depende de levar aos leitores algo que é impossível de obter nos meios digitais: artigos em profundidade, com bastante detalhe e que sejam interessantes de ler daqui a outros vinte anos. O próprio meio dos clássicos mudou muito neste intervalo de tempo. Hoje os clássicos têm outra popularidade e, num mundo cada vez mais visual, são conotados com um certo “glamour” e também como um investimento. Esta é uma realidade que tem vantagens, mas também enormes desvantagens, nomeadamente nos custos e escassez.
20 anos é a idade de um pré-clássico. Que automóvel é que não chamava a atenção há duas décadas mas que agora já nos faz virar o pescoço quando passa na rua?
Hoje dou por mim a olhar para um AX GT com uma sensação de desejo preocupante… Há 20 anos eu achava que só um Sport viria a ser digno de manter. Até mesmo um Y10 ou um Twingo me despertam vontade de fazer disparates… Há modelos que em tempos eram tão comuns, que não nos dávamos conta de que viriam a ser marcantes.
É óbvio que valorizamos automóveis como esses por causa das vivências da nossa geração mas, de um modo geral, o movimento dos clássicos tem vindo a tornar-se menos “snob” e a reconhecer qualidades em modelos que, sendo menos nobres, têm argumentos de design ou de pureza que os tornam atractivos.
Qual era o teu automóvel de sonho há 20 anos? É o mesmo de hoje ou mudou?
Mudou muito. Os sonhos são como as cenouras à frente dos burros: se estiverem perto do nariz, fazem andar para a frente, mas se estiverem a muitos quilómetros de distância, é fácil desmotivar. Talvez há 20 anos eu desejasse fervorosamente um Ferrari 355. Hoje os meus sonhos são mais realistas. Não só porque não iria conseguir comprar e manter um 355, mas também porque hoje sei o suficiente para reconhecer que me posso divertir muito mais com automóveis mais simples. Para o ano esta resposta poderá estar desactualizada mas, hoje, ficaria feliz com uma garagem que incluísse um Lotus Elise SC e um Alfa Romeo Giulia 1.3 Ti, modelo de 66, “apimentado”.
Quais os desafios para o futuro da Topos & Clássicos?
O desafio basilar da Topos & Clássicos será sempre ajustar-se às mudanças do mercado e do perfil dos potenciais leitores. É um desafio comum a toda a imprensa especializada. Quando há quase sete anos entrei nesta publicação para assumir a direcção editorial, sabia que era esse o desafio e que isso implicava uma mudança significativa no conceito. Hoje, tenho consciência de acertámos na fórmula, mas é preciso ir fazendo ajustes constantes. Só que ao contrário do que acontece com os projectos digitais, aqui a navegação é muito mais “à vista”, pois não há métricas rigorosas que nos digam, ao minuto, o que estamos a fazer bem ou mal.
É também importante pensar que, à medida que o tempo vai passando, o público muda. O “renascimento” da T&C deu-se com a conquista de um novo público, mais jovem, para quem um automóvel dos anos 90 é antigo. O desafio é, pois, conquistar já a geração seguinte.
Resumindo, eu diria que o rigor, quantidade e qualidade da informação, são aquilo que a T&C deve continuar a perseguir, mas sempre adaptando-se à época com uma “embalagem” a condizer, ou seja, boa fotografia e uma linguagem gráfica actual. Para temperar tudo isto, é essencial manter a paixão e autenticidade.
O futuro será cada vez mais digital? Como é que se mantém o papel relevante?
O presente já é absolutamente digital, no conhecimento, no entretenimento, nas relações sociais. E, no entanto, a T&C continua por cá. Muitas revistas internacionais continuam por cá.
Eu acho que é mesmo a natureza dos meios digitais que mantém o papel relevante. Todos sabemos e já sentimos a pressão de criar conteúdos para suporte digital: o conteúdo tem de ser comercial, imediato, amigo dos motores de busca, curto, conciso, popular. O sucesso comercial de um artigo na internet depende muito mais de um bom título do que de uma boa pesquisa, ou do rigor da informação. Eu também sou um forte consumidor de conteúdos digitais, mas estas são as regras do jogo, temos de as aceitar. E estando o digital, enquanto modelo de negócio, refém dessas métricas severas, isso deixa-nos (revistas) espaço para fazer exactamente o tipo de conteúdos de que mais gostamos.
Acho que as duas realidades são complementares, em escalas diferentes. Por exemplo: alguns leitores atentos do Jornal dos Clássicos são leitores da T&C mas, seguramente que quase todos os leitores da T&C seguem o Jornal dos Clássicos. A gratuitidade tem aqui um peso inegável.
Felizmente, um número suficientemente grande de entusiastas não prescinde da experiência de leitura em papel e dos artigos longos, ao mesmo tempo que, tal como os anunciantes, associam aos meios impressos uma credibilidade adicional. Não quero com isto dizer que não há meios digitais de grande credibilidade e rigor, mas partilham o espaço com muitos sites de qualidade duvidosa.
Assim, o negócio das publicações em papel continua válido e lucrativo, mas com uma audiência menor, ainda que mais fiel. Isso implica que o modelo de negócio se vá transformando, nomeadamente no que diz respeito à distribuição. Hoje, são muitas as publicações internacionais de grande prestígio que não estão disponíveis nas bancas, mas apenas por encomenda: Magneto, Road Rat, Strada e, futuramente um novo título dedicado unicamente à história do automobilismo mundial (no qual, por sorte, estarei envolvido). Estas publicações, têm assim uma enorme redução do desperdício de papel e, desde logo, uma margem de lucro muito superior, o que as torna negócios de nicho perfeitamente viáveis.
Acredito que o compromisso ideal será uma revista que tenha um bom website para se promover e complementar as suas lacunas, sem repetir conteúdos e sem tornar o papel redundante. Isso implica, no entanto, uma duplicação de equipas e de investimento.
Qual o artigo/reportagem que mais te marcou desde que assumiste a direcção da Topos?
A mim, dá-me uma satisfação enorme contar a história de um automóvel que tem valor emocional. Automóveis que ligam duas ou três gerações da mesma família e que transportam memórias. São estas histórias que nos tocam e exaltam o valor imaterial dos veículos antigos.
Deu-me uma enorme sensação de realização ter levado o saudoso Carlos Gaspar até à Rampa de St.ª Luzia com um Alfa Romeo, para reconstituir a estreia do seu GTA, que tinha acontecido exactamente 50 anos antes. E, obviamente, foi uma honra imensa ter podido entrevistar pessoalmente Emerson Fittipaldi ou Jean Ragnotti, da mesma forma que é uma honra poder contar com a colaboração e amizade do grande António Peixinho, entre outros.
Resumindo, acabam por ser mais marcantes as pessoas do que propriamente os automóveis. E é esse mesmo o fascínio desta actividade.
Há quem acredite que os clássicos vão ter uma vida limitada, que os movimentos anti-combustão vão limitar a circulação e existência de automóveis antigos. Qual é a tua visão?
A pressão política, social e de lobby sobre os motores de combustão é desproporcionada e, como sabemos, imensamente cínica. Não podemos negar as virtudes da mobilidade eléctrica, mas temos de ser honestos ao admitir que tem imensos problemas por resolver e que a generalização e optimização do seu uso só é possível se voltarmos em força à produção de energia nuclear.
É desajustado é que se peça a extinção dos motores de combustão daqui a 15 anos, quando se sabe que estão em desenvolvimento tecnologias que permitem reduzir o seu impacto ambiental para níveis inferiores aos dos eléctricos, e que isso permitiria evitar “descartar” milhares de milhões de veículos no curto prazo. É no mínimo estranho que se feche a porta a alternativas à electricidade, tal como há um século se fez com o petróleo.
Olhando para o esforço que grandes marcas, como a Porsche, estão a fazer no sentido de desenvolver os combustíveis sintéticos, e percebendo o quão importante isso é para o nicho de mercado a nível global, acredito que haverá sempre combustível disponível e continuarão a ser produzidos motores de explosão. Eventualmente poderão tornar-se num fenómeno em tudo igual aos relógios de pulso mecânicos: algo destinado a um público muito específico, a um preço elevado, mas mantendo viva uma indústria de milhões, assente em tecnologias tradicionais.
No panorama específico dos veículos históricos – ou seja, com mais de 30 anos -, não temos, até agora, grandes motivos de queixa. Apesar de algumas ameaças pontuais por governos regionais, a verdade é que a FIVA e seus representantes têm conseguido fazer valer o seu poder negocial, no sentido de manter regimes de excepção.
Apesar de alguns dramatismos ao estilo “Thunberg” e de delírios “eco-eleitorais” de alguns autarcas, hoje há uma maior sensibilidade e respeito pelo significado histórico dos veículos do passado. É importante que se sublinhe e repita que a quilometragem média de um automóvel antigo fica bem abaixo dos 2000km/ano, pelo que o seu impacto ambiental continuará a ser absolutamente irrelevante, sendo mesmo bastante inferior ao do uso de um telemóvel.
Para que os nossos direitos de utilização dos clássicos nunca sejam afectados, é também fundamental que o número veículos e seus utilizadores seja quantificável e que este movimento tenha os seus representantes. Todos podemos contribuir para isso e há duas formas simples de o fazer: sendo sócios de um ou mais Clubes e certificando os nossos veículos históricos (30 anos ou mais) e pré-clássicos (20 a 29 anos).
Conta-nos uma história engraçada com um clássico.
É impossível destacar só uma, mas estes anos na T&C têm sido ricos em episódios improváveis. Na próxima edição, conto uma delas, que começa quando eu tinha 19 anos e estive muito, muito perto de ter o meu primeiro clássico. Era um automóvel que eu conheço desde que nasci, porque pertencia ao vizinho do lado dos meus pais. No ano passado reencontrei esse exemplar de uma forma insólita, tal e qual como estava e… ensaiei-o, para ver o que andei a perder.
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