Confesso que não consigo entender como pessoas criativas e inteligentes do nível de Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gilberto Gil não atinam para a bobagem que cometem e o mal que fazem ao país ao apoiarem o movimento que, na prática, quer censurar as biografias não-autorizadas — quer dizer, independentes — de personagens públicos.
Não é possível que eles não percebam a enormidade do prejuízo que isso, se mantido como estão os dispositivos do Código Civil que permitem à Justiça na prática impedir o lançamento desses trabalho, causará à memória do país.
É triste constatar que essas figuras notáveis da cultura brasileira, e não apenas elas, juntam-se, no mesmo balaio dos que pretendem impedir aos brasileiros o conhecimento da própria história, a figuras da pior política que temos, como os ex-presidentes e senadores José Sarney e Fernando Collor.
Não sei se vocês se lembram, mas, durante a discussão do projeto de lei complementar nº 41, de 2010, que pretendia regulamentar o acesso a “informações de interesse coletivo produzidas ou custodiadas pelo Estado”, Collor e Sarney, outrora inimigos ferrenhos, uniram-se com enorme determinação em postura favorável ao sigilo eterno de determinados documentos em poder do governo.
Sim, é isso mesmo: sigilo eterno. Sarney citava como exemplos de informações a permanecerem para sempre secretas, entre outras, as contidas nos documentos relativos a fronteiras negociadas pelo patriota e maior diplomata da história do país, o Barão de Rio Branco (1845-1912).
Ambos defenderam ferozmente a tese de que era necessário manter eternamente secretos até documentos sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870), aos quais nem sequer historiadores de renome jamais puderam ter acesso.
O mesmo sigilo eterno sobre a vida de importantes figuras públicas vai ocorrer se vingar — mas não vingará! — o que desejam os que pensam como Chico, Caetano e Gil.
E vamos lembrar da dupla que queria censurar a história, para ficar mais constrangedora a companhia que a eles fazem esses ídolos da cultura nacional. Quando Collor, então governador de Alagoas, emergiu para a política nacional, em 1989, era o anti-Sarney: fez boa parte de sua campanha à Presidência naquele ano com críticas pesadíssimas ao então presidente, a quem em mais de uma ocasião chamou publicamente de “ladrão” e para o qual, em comícios, chegou a pedir “cadeia”.
Duas décadas mais tarde, como se nada tivesse ocorrido antes, sorridentes colegas de Senado, conspiraram juntos contra liberdade de informação.
Sarney e Collor fizeram o possível para atrapalhar a aprovação do projeto, mas felizmente a Lei de Acesso à Informação — que, justiça se faça, foi proposta por Lula e defendida pela presidente Dilma junto ao Congresso — acabou sendo aprovada. Sarney e Collor, na ocasião, e os que estiveram ao lado de ambos na época, na prática prestavam-se a recusar aos brasileiros um direito básico, elementar, de que não se pode abrir mão de forma alguma: o direito de conhecer a própria história.
Na polêmica de agora sobre biografias, será que não passou pela cabeça de Chico, Caetano, Gil e outros, por exemplo, o buraco gigantesco que existiria sobre o acontecimento mais importante do século XX, talvez o mais importante de todos os tempos — a II Guerra Mundial –, se não pudessem ser publicadas biografias de dezenas de seus grandes protagonistas?
Como o trabalho monumental do jornalista e historiador norte-americano William Shirer (Ascensão e Queda do III Reich, que inclui, na vastidão de seus quatro volumes em português, várias biografias)? Ou as centenas de biografias de Adolf Hitler, começando pelas que são provavelmente as mais completas, a do alemão Joachim Fest e do norte-americano John Toland? Ou as inúmeras de sir Winston Churchill, do presidente Franklin Delano Roosevelt, dos generais Dwight Eisenhower, Omar Bradley, George S. Patton e dos marechais Erwin Rommel, sir Bernard Montgomery e Georgy Zhukov?
No Brasil, se fosse necessário percorrer toda a descendência do presidente Getúlio Vargas, Lira Neto poderia ter escrito os dois volumes já publicados da excelente obra Getúlio? Seria viável, nas mesmas circunstâncias, que Claudio Bojunga iluminasse uma das Presidências mais importantes da história do país com seu JK, o Artista do Impossível?
Levada a extremos a interpretação dos partidários da censura a biografias, Laurentino Gomes jamais poderia haver escrito dois livros que ajudaram muito a matar a sede dos brasileiros por conhecer o processo de formação do Brasil, como 1808, 1822 e 1889. Já pensaram o jornalista ter que correr atrás de toda a família ex-imperial, os Orleans e Bragança, para obter autorizações a fim de contar a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, fugindo de Napoleão Bonaparte, e posteriormente a independência do país, proclamada pelo imperador Pedro I? Ou descobrir descendentes dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, ou de figuras como Benjamin Constant, para poder narrar o surgimento da República?
A lista de temas e personagens não acaba mais.
Custa a crer que, em nome de uma suposta “privacidade” — que, se ferida, acarreta punições já previstas em lei aos responsáveis — defenda-se algo inteiramente contrário ao interesse público.
Caetano, Chico, Gil e outros — capitaneados pela produtora cinematográfica Paula Lavigne, que por sinal não corre risco algum de alguém vir a escrever sua biografia não autorizada — estão na contramão da história e da liberdade de expressão.
Suas teses surpreendentemente retrógradas não triunfarão.
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