BY LUCIANOHENRIQUE on 2 DE AGOSTO DE 2014 • ( 4 )
Tudo começou com o post A volta de Mad Mad: o ideal do libertarianismo fundamentalista como o segundo pior dos mundos, que teve (pasmem) 29.500 acessos e quase 100 comentários. Depois veio o post O que Andrew Napolitano está querendo nos dizer a respeito da fraude na democracia?
Ambos foram o suficiente para que eu atraísse a ira de vários libertários. Vários deles disseram que eu não compreendi os aspectos básicos do anarco-capitalismo. Na verdade, eu sempre gostei dos autores libertários, mas, assim como faço com os autores neo-ateus, eu os assimilo após reconstruções, e reconhecendo as limitações de propostas de “solução”. Um exemplo de reconstrução do neo-ateísmo pode ser visto no post “Sam harris: por que não critico Israel?”, publicado hoje.
Um de meus críticos focou no frame “fim da democracia’, defendido por alguns libertários. Ele fez isso provavelmente por que refutei o texto de Andrew Napolitano. Segundo este crítico, há outros textos melhores e mais desafiadores defendendo o “fim da democracia”. Se é assim, vamos lá.
Os textos escolhidos são A tragédia social gerada pela democracia, de Frank Karsten e Karel Beckman ePor que a monarquia é superior à democracia, de Hans-Hermann Hoppe (foto). Vamos a eles.
A tragédia social gerada pelo esquerdismo, não pela democracia
O texto de Karsten e Beckman é bastante convincente e incisivo. Assertivo até, eu diria. Isso se você não identificar o gravíssimo erro de foco nele contido. O texto dá sustentação ao livro “Além da Democracia”, escrito por ambos. Infelizmente, não li o livro, por isso avaliarei basicamente o conteúdo do texto “A tragédia social gerada pela democracia”.
Segundo eles, a democracia parte de um mito dizendo que “a maioria está sempre certa”, mas isso não é verdade. A democracia, ao contrário, diz que a maioria é soberana e que no exercício desta soberania vai cometer erros vez por outra. A coisa já começa mal, portanto, com uma falácia do espantalho.
Outro componente no mínimo esquisito é a insistência no uso da terminologia dizendo que “os políticos estão sempre dispostos a fornecer o que as pessoas exigem deles”. Na verdade, essa análise é incompleta por ignorar um terceiro papel: o intelectual orgânico, que atua pelas entidades da sociedade civil.
Assim, quando o povo “pede assistencialismo”, na verdade temos intelectuais orgânicos de um lado (esquerda) que convenceram a massa a pedir assistencialismo. O detalhe é que esses intelectuais orgânicos da esquerda assumiram a responsabilidade por esse resultado. Com as estratégias adequadas (vindas, especialmente, desde Antonio Gramsci e a Escola de Frankfurt) foram atrás de suas metas. Do outro lado, os intelectuais orgânicos da direita optaram pela mania de não jogar a guerra política. Quer dizer, a eterna mania de não assumir a responsabilidade. Como não assumiram responsabilidade pelos resultados, e não estabeleceram estratégias adequadas para conquistar o poder, atacaram o conjunto de regras pelas quais os esquerdistas tem ganho o jogo: a democracia.
A partir daí, o texto de Karsten e Beckman passa a usar o recurso da transferência: isso quer dizer que tudo aquilo que este blog tem criticado em relação às implementações da esquerda, eles também criticam. Só que enquanto eu atribuo os problemas à esquerda, eles atribuem… à democracia.
A pergunta que não quer calar é: por que eles fazem esta transferência? A meu ver, como já mencionei antes, é prover uma racionalização para justificar o fato dos intelectuais orgânicos da esquerda terem sido mais capazes e motivados a fazer suas ideias avançarem em comparação aos intelectuais orgânicos da direita. Para fugirem do reconhecimento de suas culpas e se auto-obrigarem a corrigir sua rota, a opção é pelo discurso mais simplista de criticar a democracia. Pronto: está resolvido problema. Nenhum direitista precisa mais corrigir sua estratégia nem jogar a guerra política. A democracia é que está errada por permitir que os esquerdista entrem em campo e vençam. Será que precisamos deste tipo de racionalização em pleno 2014?
Os autores estão certos quando dizem que no sistema democrático, ao invés da monarquia, os políticos perdem muito menos do que perderiam monarcas que tivessem o país como sua propriedade privada, mas novamente esta não passa de uma racionalização equivocada para justificar o fato de que os intelectuais orgânicos são melhores para pressionar esses políticos do que são os intelectuais orgânicos da direita. Quem leu Gramsci sabe que os seus adeptos (e não são poucos, dentre a esquerda) entendem que o governo é dirigido pela sociedade civil que se associa a eles. Enquanto isso, o que Karsten e Beckman propõem? Que critiquemos a democracia por permitir que eles façam isso, ao invés de adentrar ao mesmo território para vencê-los.
Eu não vou entrar nas minúcias pois a cada ponto tratado pelo texto (burocracia, megalomania, parasitismo, assistencialismo, comportamento antissocial e crime, mediocridade e padrões mais baixos, cultura do descontentamento e visão de curto prazo) repete-se a mesma litania: a culpa é da democracia.
Há um ponto especialmente gritante, quando eles dizem: “Os pobres e os que têm menos educação são os que mais sofrem com esse sistema”. Esse “sistema”, no caso é o esquerdismo, que eles ressignificam para “a democracia”. Ora, mas se é um fato que os pobres e os desafortunados são os que mais sofrem com o esquerdismo (e eu concordo plenamente com isso, e qualquer um que tenha lido Friedman, Hayek e Mises deve ter base para argumentar nesse sentido), temos um ambiente democrático pronto para expormos nossa opinião e exigir que os políticos tendam para a direção oposta em relação a que tem escolhido. Mas para fazer isso temos que jogar o jogo político.
Infelizmente, racionalizações como “a democracia não funcionou” ou “a intervenção militar é a única solução” servem para desanimar muitos direitistas a vencerem a guerra de ideias, simplesmente por que a pressão psicológica para que eles acreditem que “problema é o jogo” já foi o suficiente para desestimulá-los a jogar.
O menor estudo de guerra política já é o suficiente para permitir que encontremos o motivo para a racionalização de “fim da democracia”: justificar a inércia política. Assim, obtem-se o conforto psicológico para não assumir a responsabilidade por tantas vitórias do esquerdismo. Basta culpar a democracia.
Em termos éticos, eu me coloco em oposição extrema à lógica exposta por Karsten e Beckman nesse texto específico. A democracia é o melhor de nossos sistemas, principalmente em um mundo complexo como o nosso. O problema que vemos hoje com tanto parasitismo, burocracia, aparelhamento estatal e diversos outros aspectos detalhados pelos autores é mérito de uma aliança dos dois principais atores da sociedade civil: (1), os esquerdistas, que usaram as estratégias corretas e se motivaram a conquistar o poder, (2) os direitista, que usaram até o que podemos chamar de anti-estratégias e fizeram de tudo para perder, mesmo que não intencionalmente.
O problema não está nas regras do jogo, mas nos jogadores de um dos lados do tabuleiro: os direitistas. Reconhecer isso é doloroso, a princípio. Mas gera resultados. Foi doloroso no início para a esquerda, especialmente entre os anos 20 e 30 (quando os fatalistas foram superados pelos pragmáticos). Eles hoje não se arrependem de ter passado por esse processo. Por isso, eles “nadam” na democracia, tanto que até conseguem corrompê-la. Enquanto não passarmos pelo mesmo processo, resta-nos ficar do outro lado só aplaudindo os resultados deles, assimo com aplaudimos os alemães depois da goleada na seleção brasileira no Mineiraço. Vamos reclamar das regras do futebol também? Claro que não.
E qual o conflito ético seríssimo entre eu e os que pedem “fim da democracia”? A meu ver, não assumir responsabilidade pelos resultados, para culpar as regras do jogo, chega a ser uma traição em relação a todo um povo que, instintivamente (e biologicamente), anseia para que entremos em campo para vencer.
Agora, falemos de Hoppe…
Por que a democracia é o melhor que temos, muito acima do segundo colocado
No texto “Por que a monarquia é superior a democracia”, Hans-Hermann Hoppe vai além do que propõem Karsten e Beckman: ele quer vender a monarquia como um sistema superior à democracia.
Verdade seja dita: ele se define como anarco-capitalista, sendo contra a coleta de impostos, a qual é sempre coercitiva. Assim ele escreve: “Sendo um anarco-capitalista, não sou apologista nem da monarquia e nem da democracia. Porém, se tiver de escolher um desses dois regimes maléficos, então é seguro dizer que a monarquia tem certas vantagens”.
O problema é que Hoppe mantém os mesmos equívocos de Karsten e Beckmann. Segundo ele, “sob a democracia surge a ilusão de que nós somos nossos próprios governantes”. Como eles sempre se esquecem, não temos apenas “o povo e os políticos”, mas “o povo, os intelectuais orgânicos e os políticos”. E, ao contrário do que ele diz, os grupos organizados conseguem pressionar os políticos (que eu sempre trato como políticos profissionais).
Os próprios movimentos sociais influenciando as ações de um partido que toma para si as demandas desses grupos (e é fácil encontrar exemplos) impugnam a tese de Hoppe. Não existe uma ilusão de participação, mas uma participação efetiva, que é executada brilhantemente por um dos lados, enquanto outro (a direita) ainda está engatinhando neste sentido. Novamente, não temos um problema com a democracia, mas com um dos lados da contenda.
Hoppe argumenta que, sob a democracia, os políticos não se responsabilizam pelos seus resultados, pois o estado “não é deles”. Ele está certo ao reconhecer que quando o estado vai a falência, o político que o lidera fica no “bem bom”. Exemplos evidentes estão nas fortunas de Maduro e Castro, enquanto seus países estão em uma pindaíba de dar dó. Um monarca, segundo Hoppe, não deixaria a coisa chegar nessa situação por ter uma perspectiva de longo prazo. Menos, menos…
Ao entender o monarca como um empresário, cujo país vai “competir” com outros países (alguns vivendo na democracia, e outros sob monarquia – isso para testarmos mentalmente o modelo de Hoppe), o que garante que ele não tire sua renda do negócio e depois entregue o poder para outro quando o país está à míngua? Mais ainda: não existindo uma democracia (portanto a participação das pessoas é limitada, inclusive nas críticas) o que garante que esse monarca vai ser devidamente auditado enquanto estiver no poder? Qual o cui bono para que ele sequer permita essa auditoria?
Com todos os defeitos que a democracia possui (e eu reconheço que esses problemas existem), nós não precisamos de fé em nossos governantes. Mas, sob uma ditadura monárquica, temos (conforme as próprias palavras de Hoppe) que nos considerar inquilinos alugando um espaço para viver, recebendo por isso os serviços do estado de acordo com os impostos cobrados. Se não estivermos satisfeitos, mudamos de país. O que impede este monarca de tomar nossas propriedades? E se existir um fluxo grande de pessoas desistindo dessa vida? Enfim, é preciso de um altíssimo componente de fé para acreditarmos em uma monarquia. Ao menos nos termos em que Hoppe a apresentou, como um substituto à democracia.
E as guerras? Na época dos conflitos entre Israel e Hamas é particularmente emotivo apelar à uma proposta de “mundo sem guerras”. Justiça seja feita, Hoppe não propõe isso, mas um mundo em que as guerras tenderiam a ser “exclusivamente entre soldados”. Ele cita Mises quando este disse que as guerras “feitas pelas democracias envolvem o homicídio em massa de civis em uma escala jamais vista na história humana”.
A realidade é totalmente diferente. As guerras que mais causaram vítimas em nossa era foram causadas por ditaduras, ou seja, exatamente o oposto do que significa uma democracia. Decerto eram estados inchados, que se permitiram trucidar seus cidadãos. Tanto Hoppe quanto Mises estão errados em estabelecer uma falsa relação de causalidade. Na verdade, hoje temos muito mais tecnologia de morte do que antes, além do maquinário de propaganda ter se tornado uma verdadeira ciência do cérebro. Enfim, não foi a “democracia” que trouxe uma maior contagem de corpos, mas a tecnologia (tanto de armamentos quanto de propaganda). Não há indícios de que isso mude com o fim da democracia.
Hoppe também promete o fim do nacionalismo com o fim da democracia, pois em monarquias haveria apenas a briga entre famílias. O argumento aqui é mais furado que meia velha. Nota-se um costume desses autores em achar que tanto o futuro é facilmente previsível (e planejável) como o passo é plenamente recuperável. Ambos os raciocínios não tem fundamento algum.
Imaginemos por exemplo que São Paulo se transforme em um sistema monárquico, nas mãos de uma família. São Paulo se tornaria uma pequena nação. Alguém deixaria de se orgulhar por esta nação pertencer a uma família? Nem a pau, Juvenal…
Conclusão
Geralmente, esses autores não são eficientes nas propostas de como a democracia deveria ser eliminada. Li certa vez que deveria ser pela criação de um senso comum dizendo que “a democracia é imoral”. Mas se isso for feito pela remodelação do senso comum, então ele estaria usando a… democracia, que é o único sistema permitindo que o sistema presente seja criticado. Nesse caso, todas as críticas à democracia dependem da democracia, configurando um caso sério de paralaxe cognitiva.
Talvez a democracia surja por uma intervenção militar, mas aí dependemos de fé nos ditadores, que estabeleceriam uma monarquia. Depois que as técnicas de chegada ao poder através da democracia (especialmente as gramscistas) se mostraram muito mais efetivas, a alternativa de intervenção militar também não é das melhores.
O que importa é que tanto Karsten e Beckman como Hoppe não são convincentes em suas propostas de superação da democracia.
No geral, os argumentos mais interessantes apresentados por eles contra a democracia estão desfocados, e deveriam ter sido lançados contra os esquerdistas, estes sim a verdadeira prova de sucesso da democracia, exatamente por que estes últimos estão conseguindo chegar ao poder depois de abraçá-la, ao invés de rejeitá-la.
O caminho para que possamos vencer na guerra política passa pela superação de ideias não justificadas como “pedidos por intervenção militar” ou “fim da democracia”, que não resolvem problema algum, são inviáveis, não comprovadas como benéficas (em termos de resultados) e, para piorar, são a maior queimação de filme da história recente, em termos políticos. É pior que lepra.
Sou um fã dos autores libertários quando estes problematizam o estado. Eu mesmo adoto a ideia de “estado como um serviço”, claramente inspirada no libertarianismo. Mas não posso deixar de dizer que nos momentos em que alguns deles pedem “fim de democracia” só me cabe tratar o assunto na base da piada, que é como farei a partir de agora depois deste post, onde tratei supostos “textos desafiadores” de autores libertários propondo o fim da democracia.
Eu proponho o fim do discurso pedindo “o fim da democracia”. Esse tipo de discurso precisa ser enterrado e ser mandado para a lata de lixo da história.
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