O maior risco para o PT, para além do Governo e do atual mandato, talvez
não seja a multidão que
ocupou as ruas do Brasil, mas a que não estava lá.
São os que não estavam
nem no dia 13 de março, quando movimentos como CUT,
UNE e MST organizaram uma manifestação que,
apesar de críticas a medidas de ajuste fiscal tomadas pelo Governo, defendia a
presidente Dilma Rousseff.
Nem estavam no já histórico domingo, 15 de março, quando
centenas de milhares de pessoas aderiram aos protestos, em
várias capitais e cidades do país, em manifestações contra
Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da internet, com
bandeiras que defendiam o fim da corrupção, o impeachment da presidente e até
uma aterradora, ainda que minoritária, defesa da volta da ditadura.
São os que
já não sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma bandeira do PT, mas que
também não atenderiam ao chamado das forças de 15 de março, os que apontam que
o partido perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda – e gente
de esquerda. É essa herança do PT que o Brasil, muito mais do que o partido,
precisará compreender.
E é com ela que teremos de lidar durante muito mais
tempo do que o desse mandato.
Tenho dúvidas sobre a tecla
tão batida por esses dias do Brasil polarizado. Como se o país estivesse
dividido em dois polos opostos e claros. Ou, como querem alguns, uma
disputa de ricos contra pobres. Ou, como querem outros, entre os cidadãos
contra a corrupção e os beneficiados pela corrupção.
Ou entre os a favor e os
contra o Governo. Acho que a narrativa da polarização serve muito bem a alguns
interesses, mas pode ser falha para a interpretação da atual realidade do país.
Se fosse simples assim, mesmo com a tese do impeachment nas ruas, ainda assim
seria mais fácil para o PT.
Algumas
considerações prévias. Se no segundo turno das eleições de 2014, Dilma Rousseff ganhou por uma
pequena margem –
54.501.118 votos contra 51.041.155 de Aécio Neves –, não há dúvida de que ela
ganhou. Foi democraticamente eleita, fato que deve ser respeitado acima de
tudo.
Não existe até esse momento nenhuma base para impeachment,
instrumento traumático e seríssimo que não pode ser manipulado com leviandade,
nem mesmo no discurso. Quem não gostou do resultado ou se arrependeu do voto,
paciência, vai ter de esperar a próxima eleição.
Os resultados valem também
quando a gente não gosta deles. E tentar o contrário, sem base legal, é para
irresponsáveis ou ignorantes ou golpistas.
No resultado das eleições ampliou-se a ressonância da tese de um
país partido e polarizado. Mas não me parece ser possível esquecer que outros
37.279.085 brasileiros não escolheram nem Dilma nem Aécio, votando nulo ou
branco e, a maior parte, se abstendo de votar.
É muita gente – e é muita gente
que não se sentia representada por nenhum dos dois candidatos, pelas mais
variadas razões, à esquerda e também à direita, o que complica um pouco a tese
da polarização.
Além das divisões entre os que se polarizariam em um lado ou
outro, há mais atores no jogo que não estão nem em um lado nem em outro. E não
é tão fácil compreender o papel que desempenham.
No mesmo sentido, pode ser
muito arriscado acreditar que quem estava nos protestos neste domingo eram
todos eleitores de Aécio Neves. A rua é, historicamente, o
território das incertezas – e do incontrolável.
Na
tese do Brasil polarizado, onde ficam os mais de 37 milhões que não votaram nem
em Dilma nem em Aécio?
Há lastro na realidade para
afirmar também que uma parte dos que só aderiram à Dilma Rousseff no segundo
turno era composta por gente que acreditava em duas teses amplamente esgrimidas
na internet às vésperas da votação:
1) a de que Dilma, assustada por quase ter
perdido a eleição, em caso de vitória faria “uma
guinada à esquerda”, retomando antigas bandeiras que fizeram do PT o
PT;
2) a de votar em Dilma “para manter as conquistas sociais” e “evitar o mal
maior”, então representado por Aécio e pelo PSDB. Para estes, Dilma Rousseff
não era a melhor opção, apenas a menos ruim para o Brasil.
E quem pretendia votar branco,
anular o voto ou se abster seria
uma espécie de traidor da esquerda e também do país e do povo brasileiro, ou
ainda um covarde, acusações que ampliaram, às vésperas das eleições, a cisão
entre pessoas que costumavam lutar lado a lado pelas mesmas causas.
Neste caso,
escolhia-se ignorar, acredito que mais por desespero eleitoral do que por convicção,
que votar nulo, branco ou se abster também é um ato político.
Faz
sentido suspeitar que uma fatia significativa destes que aderiram à Dilma
apenas no segundo turno, que ou esperavam “uma guinada à esquerda” ou “evitar o
mal maior”, ou ambos, decepcionaram-se com o seu voto depois da escolha de
ministros como Kátia Abreu eJoaquim Levy, à direita no espectro político,
assim como com medidas que afetaram os direitos dos trabalhadores.
Assim, se a
eleição fosse hoje, é provável que não votassem nela de novo. Esses
arrependidos à esquerda aumentariam o número de eleitores que, pelas mais
variadas razões, votaram em branco, anularam ou não compareceram às urnas,
tornando maior o número de brasileiros que não se sentem representados por
Dilma Rousseff e pelo PT, nem se sentiriam representados por Aécio Neves e pelo
PSDB.
Esses
arrependidos à esquerda, assim como todos aqueles que nem sequer cogitaram
votar em Dilma Rousseff nem em Aécio Neves porque se situam à esquerda de
ambos, tampouco se sentem identificados com qualquer um dos grupos que foi para as ruas
no domingo contra a presidente.
Para estes, não existe a menor
possibilidade de ficar ao lado de figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP) ou de defensores da ditadura militar
ou mesmo de Paulinho da Força. Mas também
não havia nenhuma possibilidade de andar junto com movimentos como CUT, UNE e
MST, que para eles “pelegaram” quando o PT chegou ao poder: deixaram-se cooptar
e esvaziaram-se de sentido, perdendo credibilidade e adesão em setores da
sociedade que costumavam apoiá-los.
Não há hoje uma
figura nacional para ocupar o lugar de representação da esquerda
Essa parcela da esquerda –
que envolve desde pessoas mais velhas, que historicamente apoiaram o PT, e
muitos até que ajudaram a construí-lo, mas que se decepcionaram, assim como
jovens filhos desse tempo, em que a ação política precisa ganhar
horizontalidade e se construir de outra maneira e com múltiplos canais de
participação efetiva – não encontrou nenhum
candidato que a representasse.
No primeiro turno, dividiram seus
votos entre os pequenos partidos de esquerda, como o PSOL, ou votaram em Marina Silva, em especial por
sua compreensão da questão ambiental como estratégica, num mundo confrontado
com a mudança climática, mas votaram com dúvidas.
No segundo turno, não se
sentiram representados por nenhum dos candidatos.
Marina
Silva foi quem chegou mais perto de ser uma figura com estatura nacional de
representação desse grupo à esquerda, mais em 2010 do que em 2014.
Mas
fracassou na construção de uma alternativa realmente nova dentro da política
partidária.
Em parte por não ter conseguido registrar seu partido a tempo de
concorrer às eleições, o que a fez compor com o PSB,
sigla bastante complicadapara quem a apoiava, e assumir a cabeça de
chapa por conta de uma tragédia que nem o mais fatalista poderia prever; em
parte por conta da campanha
mentirosa e de baixíssimo nível que
o PT fez contra ela; em parte por equívocos de sua própria campanha, como a mudança do capítulo do
programa em que falava de sua política para os LGBTs, recuo que,
além de indigno, só ampliou e acentuou a desconfiança que muitos já tinham com
relação à interferência de sua fé evangélica em questões caras como casamento
homoafetivo e aborto; em parte porque escolheu ser menos ela mesma e
mais uma candidata que supostamente seria palatável para estratos da população
que precisava convencer.
São muitas e complexas as razões.
O
que aconteceu com Marina Silva em 2014 merece uma análise mais profunda. O fato
é que, embora ela tenha ganhado, no primeiro turno de 2014, cerca de 2,5
milhões de votos a mais do que em 2010, seu capital político parece ter
encolhido, e o partido que está construindo, a Rede Sustentabilidade, já sofreu
deserções de peso.
Talvez ela ainda tenha chance de recuperar o lugar que quase
foi seu, mas não será fácil. Esse é um lugar vago nesse momento.
Há
uma parcela politizada, à esquerda, que hoje não se sente representada nem pelo
PT nem pelo PSDB, não participou de nenhum dos panelaços nem de nenhuma das
duas grandes manifestações dos últimos dias, a de 15 de março várias vezes
maior do que a do dia 13. É, porém, muito atuante politicamente em
várias áreas e tem grande poder de articulação nas redes sociais.
Não tenho
como precisar seu tamanho, mas não é desprezível. É com essa parcela de
brasileiros, que votou em Lula e no PT por décadas, mas que deixou de votar, ou
de jovens que estão em movimentos horizontais apartidários, por causas
específicas, que apontam o que de fato deveria preocupar o PT, porque esta era
ou poderia ser a sua base, e foi perdida.
O partido das ruas
perdeu as ruas porque acreditou que não precisava mais caminhar por elas
parcela de esquerda que não bateria panelas contra Dilma
Rousseff, mas também não a defenderia, aponta a falência do PT em seguir
representando o que representou no passado. Aponta que, em algum momento, para
muito além do Mensalão e
da Lava Jato, o PT escolheu se perder da sua base
histórica, numa mistura de pragmatismo com arrogância. É possível que o PT
tenha deixado de entender o Brasil.
Envelhecido, não da forma desejável,
representada por aqueles que continuam curiosos em compreender e acompanhar as
mudanças do mundo, mas envelhecido da pior forma, cimentando-se numa conjuntura
histórica que já não existe.
E que não voltará a existir. Essa aposta arriscada
precisa que a economia vá sempre bem; quando vai mal, o chão desaparece.
Fico
perplexa quando lideranças petistas, e mesmo Lula, perguntam-se, ainda que
retoricamente, por que perderam as ruas. Ora, perderam porque o PT gira em
falso. O partido das ruas perdeu as ruas – menos porque foi expulso, mais
porque se esqueceu de caminhar por elas.
Ou, pior, acreditou que não precisava
mais. Nesse contexto, Dilma Rousseff é só a personagem trágica da história,
porque em algum momento Lula, com o aval ativo ou omisso
de todos os outros, achou que poderia eleger uma presidente que não
gosta de fazer política. Estava certo a curto prazo, podia. Mas sempre há o dia
seguinte.
Não
adianta ficar repetindo que só bateu panela quem é da
elite. Pode ter sido maior o barulho nos bairros nobres de São
Paulo, por exemplo, mas basta um pequeno esforço de reportagem para constatar
que houve batuque de panelas também em bairros das periferias.
Ainda que as
panelas batessem só nos bairros dos ricos e da classe média, não é um bom
caminho desqualificar quem protesta, mesmo que você ou eu não concordemos com a
mensagem, com termos como “sacada gourmet” ou “panelas Le Creuset”.
Todos têm
direito de protestar numa democracia e muitos dos que ridicularizam quem
protestou pertencem à mesma classe média e talvez tenham uma ou outra panelinha
Le Creuset ou até pagou algumas prestações a mais no apartamento para ter uma
sacada gourmet, o que não deveria torná-los menos aptos nem a protestar nem a
criticar o protesto.
Nos
panelaços, só o que me pareceu inaceitável foi chamar a presidente de
“vagabunda” ou de “vaca”, não apenas porque é fundamental respeitar
o seu cargo e aqueles que a elegeram, mas também porque não se pode chamar
nenhuma mulher dessa maneira.
E, principalmente, porque o “vaca” e o
“vagabunda” apontam a quebra do pacto civilizatório. É nesses xingamentos,
janela a janela, que está colocado o rompimento dos limites, o esgarçamento do
laço social.
Assim como, no domingo de 15 de março, essa ruptura esteve
colocada naqueles que defendiam a volta da ditadura. Não há desculpa para
desconhecer que o regime civil militar que dominou o Brasil pela força por 21 anos torturou gente, inclusive
crianças, e matou gente. Muita gente.
Assim, essa defesa é
inconstitucional e criminosa. Com isso, sim, precisamos nos preocupar, em vez
de misturar tudo numa desqualificação rasteira.
É urgente que a esquerda faça
uma crítica (e uma autocrítica) consistente, se quiser ter alguma importância
nesse momento agudo do país.
Tão ou mais
importante do que a corrupção, que não foi inventada pelo PT no Brasil, é o
fato de o partido ter traído algumas de suas bandeiras de identidade
Também não adianta
continuar afirmando que quem foi para as ruas é aquela fatia da população que é
contra as conquistas sociais promovidas pelo governo Lula, que tirou da miséria milhões
de brasileiros e fez
com que outros milhões ascendessem ao que se chamou de classe C. Pessoas as
quais é preciso respeitar mais pelo seu passado do que pelo seu presente
ficaram repetindo na última semana que quem era contra o PT não gostava de
pobres nos aeroportos ou estudando nas universidades, entre outras máximas.
É
fato que existem pessoas incomodadas com a mudança histórica que o PT
reconhecidamente fez, mas dizer que toda oposição ao PT e ao Governo é composta
por esse tipo de gente, ou é cegueira ou é má fé.
Num
momento tão acirrado, todos que têm expressão pública precisam ter muito mais
responsabilidade e cuidado para não aumentar ainda mais o clima de ódio – e
disseminar preconceitos já se provou um caminho perigoso. Até a negação deve
ter limites. E a negação é pior não para esses ricos caricatos, mas para o PT,
que já passou da hora de se olhar no espelho com a intenção de se enxergar.
De
novo, esse discurso sem rastro na realidade apenas gira em falso e piora tudo.
Mesmo para a propaganda e para o marketing, há limites para a falsificação da
realidade. Se é para fazer publicidade, a boa é aquela capaz de captar os
anseios do seu tempo.
É
também por isso que me parece que o grande problema para o PT não é quem foi
para as ruas no domingo, nem quem bateu panela, mas quem não fez nem uma coisa
nem outra, mas também não tem a menor intenção de apoiá-lo, embora já o tenha
feito no passado ou teria feito hoje se o PT tivesse respeitado as bandeiras do
passado.
Estes apontam o que o PT perdeu, o que já não é, o que possivelmente
não possa voltar a ser.
O
PT traiu algumas de suas bandeiras de identidade, aquelas que fazem com que em
seu lugar seja preciso colocar máscaras que não se sustentam por muito tempo.
Traiu não apenas por ter aderido à corrupção, que obviamente não foi inventada
por ele na política brasileira, fato que não diminui em nada a sua
responsabilidade.
A sociedade brasileira, como qualquer um que anda por aí
sabe, é corrupta da padaria da esquina ao Congresso. Mas ser um partido “ético”
era um traço forte da construção concreta e simbólica do PT, era parte do seu
rosto, e desmanchou-se.
Embora ainda existam pessoas que merecem o máximo
respeito no PT, assim como núcleos de resistência em determinadas áreas,
secretarias e ministérios, e que precisam ser reconhecidos como tal, o partido
traiu causas de base, aquelas que fazem com que se desconheça. Muitos dos que
hoje deixaram de militar ou de apoiar o PT o fizeram para serem capazes de
continuar defendendo o que o PT acreditava.
Assim como compreenderam que o
mundo atual exige interpretações mais complexas. Chamar a estes de traidores ou
de fazer o jogo da direita é de uma boçalidade assombrosa. Até porque, para
estes, o PT é a direita.
A síntese das
contradições e das traições do PT no poder não é a Petrobras, mas Belo Monte
A parcela à esquerda que
preferiu ficar fora de manifestações a favor ou contra lembra que tão
importante quando discutir a corrupção na Petrobras é debater a opção por combustíveis
fósseis que a Petrobras representa, num momento em que o mundo precisa reduzir
radicalmente suas emissões de gases do efeito estufa.
Lembra que estimular a
compra de carros como o Governo federal fez é contribuir com o transporte
privado individual motorizado, em vez de investir na ampliação do transporte
público coletivo, assim como no uso das bicicletas.
É também ir na contramão ao
piorar as condições ambientais e de mobilidade, que costumam mastigar a vida de
milhares de brasileiros confinados por horas em trens e ônibus lotados num
trânsito que não anda nas grandes cidades.
Lembra ainda que estimular o consumo
de energia elétrica, como o Governo fez, é uma irresponsabilidade não só
econômica, mas socioambiental, já que os recursos são caros e finitos.
Assim
como olhar para o colapso da água visando apenas obras emergenciais, mas sem se
preocupar com a mudança permanente de paradigma do consumo e sem se preocupar
com o desmatamento tanto da floresta amazônica quanto do Cerrado quanto das
nascentes do Sudeste e dos últimos redutos sobreviventes de Mata Atlântica fora
e dentro das cidades é um erro monumental a médio e a longo prazos.
Os
que não bateram panelas contra o PT e que não bateriam a favor lembram que a
forma de ver o país (e o mundo) do lulismo pode ser excessivamente limitada
para dar conta dos vários Brasis. Povos tradicionais e povos indígenas, por
exemplo, não cabem nem na categoria “pobres” nem na categoria “trabalhadores”.
Mas, ao fazer grandes hidrelétricas na Amazônia, ao ser o governo de Dilma
Rousseff o que menos demarcou terras indígenas, assim como teve desempenho
pífio na criação de reservas extrativistas e unidades de conservação, ao
condenar os povos tradicionais ao etnocídio ou à expulsão para a periferia das
cidades, é em pobres que são convertidos aqueles que nunca se viram nesses
termos.
Em parte, a construção objetiva e simbólica de Lula – e sua forma de
ver o Brasil e o mundo – encarna essa contradição (escrevi sobre isso aqui),
que o PT não foi capaz nem quis ser capaz de superar no poder. Em vez de
enfrentá-la, livrou-se dos que a apontavam, caso de Marina Silva.
O
PT no Governo priorizou um projeto de desenvolvimento predatório, baseado em
grandes obras, que deixou toda a complexidade socioambiental de fora.
Escolha
inadmissível num momento em que a ação do homem como causa do aquecimento
global só é descartada por uma minoria de céticos do clima, na qual se inclui o
atual ministro de Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo, mais uma das
inacreditáveis escolhas de Dilma Rousseff.
A síntese das contradições – e
também das traições – do PT no poder não é a Petrobras, mas Belo Monte.
Sobre a usina hidrelétrica já pesa a denúncia de que só a construtora
Camargo Corrêa teria pagado mais de R$ 100 milhões em propinas para o PT e para
o PMDB. É para Belo Monte que o país precisaria olhar com muito mais
atenção.
É na Amazônia, onde o PT reproduziu a visão da ditadura ao olhar para
a floresta como um corpo para a exploração, que as fraturas do partido ao
chegar ao poder se mostram em toda a sua inteireza. E é também lá que a falácia
de que quem critica o PT é porque não gosta de pobre vira uma piada perversa.
A
sorte do PT é que a Amazônia é longe para a maioria da população e menos
contada pela imprensa do que deveria, ou contada a partir de uma visão de mundo
urbana que não reconhece no outro nem a diferença nem o direito de ser
diferente.
Do contrário, as barbaridades cometidas
pelo PT contra os
trabalhadores pobres, os povos indígenas e as populações tradicionais, e contra
uma floresta estratégica para o clima, para o presente e para o futuro, seriam
reconhecidas como o escândalo que de fato são. É também disso que se lembram
aqueles que não gritaram contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderiam.
Lembram
também que o PT não fez a reforma agrária; ficou aquém na saúde e na educação,
transformando “Brasil, Pátria Educadora”num
slogan natimorto; avançou muito pouco numa política para as drogas que vá além
da proibição e da repressão, modelo que encarcera milhares de pequenos
traficantes num sistema prisional sobre o qual o ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, já disse que “prefere morrer a cumprir pena”;
cooptou grande parte dos movimentos sociais (que se deixaram cooptar por
conveniência, é importante lembrar); priorizou a inclusão social pelo consumo,
não pela cidadania; recuou em questões como o kit anti-homofobia e o aborto; se
aliou ao que havia de mais viciado na política brasileira e aos velhos clãs do
coronelismo, como os Sarney.
Isso
é tão ou mais importante do que a corrupção, sobre a qual sempre se pode dizer
que começou bem antes e atravessa a maioria dos partidos, o que também é
verdade.
Olhar com honestidade para esse cenário depois de mais de 12 anos de
governo petista não significa deixar de reconhecer os enormes avanços que o PT
no poder também representou. Mas os avanços não podem anular nem as traições,
nem os retrocessos, nem as omissões, nem os erros.
É preciso enfrentar a
complexidade, por toda as razões e porque ela diz também sobre a falência do
sistema político no qual o país está atolado, para muito além de um partido e
de um mandato.
Há
algo que o PT sequestrou de pelo menos duas gerações de esquerda e é essa a sua
herança mais maldita. E a que vai marcar décadas, não um mandato.
Tenho
entrevistado pessoas que ajudaram a construir o PT, que fizeram dessa
construção um projeto de vida, concentradas em lutas específicas. Essas pessoas
se sentem traídas porque o partido rasgou suas causas e se colocou ao lado de
seus algozes.
Mas não traídas como alguém de 30 anos pode se sentir traído em
seus últimos votos. Este tem tempo para construir um projeto a partir das novas
experiências de participação política que se abrem nesse momento histórico
muito particular.
Os mais velhos, os que estiveram lá na fundação, não. Estes
sentem-se traídos como alguém que não tem outra vida para construir e acreditar
num novo projeto. É algo profundo e também brutal, é a própria vida que passa a
girar em falso, e justamente no momento mais crucial dela, que é perto do fim
ou pelo menos nas suas últimas décadas.
É um fracasso também pessoal, o que
suas palavras expressam é um testemunho de aniquilação. Algumas dessas pessoas
choraram neste domingo, dentro de casa, ao assistir pela TV o PT perder as
ruas, como se diante de um tipo de morte.
O sequestro dos
sonhos de pelo menos duas gerações de esquerda é a herança mais maldita do PT,
ainda por ser desvendada em toda a sua gama de sentidos para o futuro
O PT, ao trair alguns de
seus ideias mais caros, escavou um buraco no Brasil. Um bem grande, que ainda
levará tempo para virar marca. Não adianta dizer que outros partidos se
corromperam, que outros partidos recuaram, que outros partidos se aliaram a
velhas e viciadas raposas políticas.
É verdade. Mas o PT tinha um lugar único
no espectro partidário da redemocratização, ocupava um imaginário muito
particular num momento em que se precisava construir novos sentidos para o
Brasil. Era o partido “diferente”.
Quem acreditou no PT esperou muito mais
dele, o que explica o tamanho da dor daqueles que se desfiliaram ou deixaram de
militar no partido. A decepção é sempre proporcional à esperança que se tinha
depositado naquele que nos decepciona.
É
essa herança que precisamos entender melhor, para compreender qual é a
profundidade do seu impacto no país. E também para pensar em como esse vácuo
pode ser ocupado, possivelmente não mais por um partido, pelo menos não um nos
moldes tradicionais. Como se sabe, o vácuo não se mantém.
Quem acredita em
bandeiras que o PT já teve precisa parar de brigar entre si – assim como de
desqualificar todos os outros como “coxinhas” – e encontrar caminhos para
ocupar esse espaço, porque o momento é limite.
O PT deve à sociedade brasileira
um ajuste de contas consigo mesmo, porque o discurso dos pobres contra ricos já
virou fumaça. Não dá para continuar desconectado com a realidade, que é só uma
forma estúpida de negação.
Para
o PT, a herança mais maldita que carrega é o silêncio daqueles que um dia o
apoiaram, no momento em que perde as ruas de forma apoteótica.
O PT precisa
acordar, sim. Mas a esquerda também.
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O
Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma
Duas. Site:desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebrum
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