A estreita relação entre hipocrisia e desequilíbrio
Não é à toa que se fala muito, atualmente, de relacionamentos frágeis ou “líquidos”, nos quais a “fluidez” é a palavra da vez.
Na
primeira parte desta série, falamos, dentre outras coisas, sobre a aparente
pretensão de tratarmos daquilo que chamamos de “o maior problema da igreja
atual”. Com tantos problemas, é difícil elencarmos “o maior”, mas, quando vemos
o tratamento que existe na Bíblia à hipocrisia, não temos muitas outras opções,
senão aprofundarmo-nos mais e mais no que concerne àquela prática.
Na verdade,
a hipocrisia estaria listada como um vício. Nos moldes
aristotélicos, a hypokritês,
que designava os atores que “fingiam” seus personagens nos palcos, passa a ser
considerada uma falta, um “defeito” da moral, cuja ação virtuosa seria o
“meio”, o equilíbrio entre a falta e o excesso. É por isso
que, até hoje, falamos em “equilíbrio” das coisas. Como quase todo mundo parece
viver desiquilibrado, a importância deste estudo acentua-se.
Ligar a hipocrisia ao desequilíbrio e,
mais especificamente, ao aumento
do desequilíbrio na atualidade, não é tarefa difícil.
Praticamente todo mundo concorda que vivemos uma época de excessos, de
polarizações, em que vemos com mais clareza as faltas e os exageros, ou, em
outras palavras, os “vícios” de uma sociedade doente.
O fingimento nas relações
claramente segue este desequilíbrio, posto que parece que os homens tentam
fugir cada vez mais dos relacionamentos que constroem.
Não é à toa que se fala muito, atualmente,
de relacionamentos frágeis ou líquidos, nos quais
a “fluidez” é a palavra da vez.
A inconsistência em como vivemos nossas
relações, hoje, é reflexo direto de nossa própria inconsistência como seres
individuais, antes mesmo de sermos seres sociais. Quando chamados à atenção
sobre isto, fugimos existencialmente, não dando ouvidos ao que se nos está
sendo cobrado, e fazemos caras de choro, com pena de nós mesmos, no melhor
estilo da “geração mimada” em que nos tornamos.
E falar sobre este assunto não
só tem se tornado um peso, um fardo, como causa extrema insatisfação
existencial; o que, sem dúvida, é mais uma prova inequívoca do profundo
desequilíbrio social, emocional, psicológico e espiritual que vivemos.
A Bíblia, como
um livro de sabedoria que também é, nos ensina quanto aos vícios. Chamando-nos
à atenção aos perigos do desequilíbrio
moral, adverte-nos:
“Não sejas demasiadamente justo,
nem exageradamente sábio; por que te destruirias a ti mesmo? Não sejas
demasiadamente perverso, nem sejas louco; por que morrerias fora do teu tempo?”
– Eclesiastes 7:16-17.
Quase como se estivesse dizendo que no “excesso” ou no
“exagero” da justiça e da sabedoria se caracteriza exatamente a falta de
sabedoria, tal qual na extrema falta de ambas, a saber, na perversidade e na loucura (também
em “excesso”), o Livro do Eclesiastes revela um importante conceito hebraico
que, bem antes da ética aristotélica, ensina-nos que o equilíbrio é um
sentimento que nos livra inclusive da destruição e da morte.
Este princípio teórico é asseverado em várias outras partes da Escritura,
mostrando-nos sua importância para a sabedoria antiga.
Outro texto bíblico que corrobora o que
digo é: “Como
cidade derribada, que não tem muros, assim é o homem que não tem domínio
próprio”, Provérbios 25:28. Que melhor definição sinônima de
“equilíbrio moral e psicológico” do que “domínio próprio”? A esta característica,
atribuímos o bom senso, a prudência, a temperança, a serenidade.
O que não nos
é muito aparente, por enquanto, é a sua ligação com a hipocrisia, mas
isto, prezado internauta, é porque ainda não fizemos o link causa-efeito,
ou seja, as implicações sinérgicas entre a hipocrisia e o desequilíbrio.
No texto anterior, dissemos que há
“desdobramentos teóricos e práticos” da questão, e procuraremos falar sobre os
mesmos, elencando-os à medida em que avançamos em nossa meta, que é a completa
exposição da hipocrisia como “o” maior problema da Igreja atual. A falta do
domínio próprio, por exemplo, resulta em ações, acerca das quais normalmente
nos arrependemos de tê-las praticado.
É justamente aí que entram outros
aspectos, psicológicos, os quais confirmam a suspeita da vulnerabilidade
daquele(a) que assim age, isto é, contra sua própria consciência, tendo que
“assassinar” o bom senso, levando-o(a) a mentir, distorcer, ludibriar, afim de
que possa-se manter o edifício de (auto) engano que ele(a) próprio(a) erigiu
para si.
Ora, quem mente, distorce conceitos e fatos
e ludibria o próximo, tendo que viver na mentira e no engano constantemente,
para que o que foi dito se sustente. O efeito a longo prazo? A crença naquilo
que se diz e no que se criou, na própria ilusão da verdade, muitas vezes nos
servindo de subsídio para, infantilmente, transmitirmos aos outros, dentro de
frágeis relações, que a forma como transmitimos e compartilhamos como pessoas
vale mais do que o quê compartilhamos.
Em suma: nas relações atuais, para uma
parcela crescente de seres humanos, a forma vale mais e em detrimento do
próprio conteúdo, ocasionando um acentuado desequilíbrio nocivo resultante.
Esse é o resultado direto e o que proporciona um modus operandi típico da nossa maneira de viver e da
forma como nos relacionamos uns com os outros: relacionamentos frágeis e um
ambiente mais do que propício para o florescimento da hipocrisia.
No
próximo texto desta série, aprofundaremos mais as questões práticas espirituais
resultantes dos pontos negativos da relação entre equilíbrio e hipocrisia.
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