Foram 14 mil quilômetros percorridos no território brasileiro em três anos de pesquisa.
A missão, dado pela rei da Baviera, era coletar o máximo possível de amostras. E não somente plantas e animais, mas livros, moedas, registros de música, detalhes topográficos, etnográficos, linguísticos.
À frente da excursão científica, uma das mais abrangentes e profundas feitas na América do Sul na primeira metade do século XIX, estavam o zoólogo Johann Baptist Spix, de 36 anos, e o botânico Carl Friedrich Phillip Martius, de 23, dois bávaros que chegaram ao Brasil de carona na comitiva da princesa Maria Leopoldina.
Já a de 5 reais exibe o busto de dom Pedro I. Imagem: divulgação
Desenho de Martius retratando a floresta quente da Caatinga, em 1842
Na expedição a dupla enfrentou de tudo - seca, inundações e todo tipo de doença. Retornaram à Europa com quatro índios (que pouco sobreviveram no velho continente).
Devido a importância da pesquisa realizada, os expedicionários são sagrados cavaleiros (ganham o “von” à frente do sobrenome). Spix morre pouco tempo depois da viagem, abatido por doenças que enfrentou na excursão. Martius, por outro lado, vive até os 74 anos.
Até o fim da vida ele se dedicou a organizar e publicar o que descobriu no Brasil, se tornando um dos principais responsáveis pela divulgação na Europa do que existe no país em termos de natureza e populações nativas.
Sua primeira obra publicada foi “Viagem ao Brasil”, que traz o relato da expedição e um atlas anexado com esboços, desenhos e litografias. Seus livros são rapidamente traduzidos para o inglês e o francês.
A primeira edição em português, no entanto, só saiu em 1938, por ocasião dos cem anos do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil.
A história da passagem dos naturalistas bávaros pelo território brasileiro ganha um novo capítulo com o lançamento recente da livro “Martius”, dos historiadores Pablo Diener e Maria Fátima Costa.
A obra, ricamente ilustrada, reúne gravuras inéditas (cerca de 150 das 240 do livro) onde se pode ter uma noção do Brasil daquela época em registros de paisagens, plantas e índios.
Há também gravuras, aquarelas e esboços de Rugendas, Ender, Post e outros artistas viajantes.
A publicação é da editora Capivara, por onde os autores lançaram “Rugendas e o Brasil”, de 2002 (reeditado e ampliado em 2012).
O livro “Martius” sai agora nos 200 anos da expedição e tem patrocínio viabilizado através da Lei Rouanet.
Em entrevista por email, Pablo Diener e Maria Fátima Costa contam ao VIVER detalhes da pesquisa sobre Martius, bem como algumas curiosidades da expedição do bávaro.
A expedição de Martius foi a mais abrangente e profunda já feita no Brasil? Em termos de descobertas, no que essa expedição é superior às realizadas anteriormente pelos portugueses?
A expedição de Spix e Martius sem dúvida está entre as mais abrangentes e profundas que percorreram o Brasil na primeira metade do XIX.
Principalmente pela extensão do périplo e por ter percorrido parte importante do sertão nordestino, inaugurando uma rota da Bahia ao Maranhão passando pelo Piauí.
E também pelas coleções diversificadas e ricas que reuniram.
É difícil fazer uma avaliação comparativa entre a expedição bávara e as portuguesas em termos de descobertas. Por exemplo, a “Viagem Filosófica”, de Alexandre Rodrigues Ferreira, desenvolveu um intenso trabalho de coletas e classificações, tendo percorrido no final do XVIII na Amazônia praticamente o mesmo roteiro que Spix e Martius realizaram entre 1819/1820. Entretanto, por seu trabalho (de Ferreira) não ter sido publicado à época, as suas descobertas permaneceram desconhecidas.
O que a pesquisa de vocês propunha responder sobre a expedição de Martius?
Há várias questões que nos propusemos responder através da pesquisa.
Uma delas refere-se à própria formatação da expedição: como foi concebida?
Qual foi o vínculo dos bávaros com a equipe austríaca?
Como foi definida a rota? No livro oferecemos informações novas e bastante consistentes para esses assuntos, com base na documentação que encontramos na Academia das Ciências.
Também procuramos esclarecer como Spix e Martius conceberam o projeto editorial para divulgar as informações que haviam reunido; também para isto encontramos correspondência e um verdadeiro plano de publicações.
E para os diversos campos temáticos, sobretudo, para os trabalhos de botânica e de linguística localizamos fontes muito esclarecedoras.
Dentre eles, o trabalho que Martius realizou para sistematizar as investigações sobre as línguas indígenas, por exemplo, é enorme, e denota um empenho por entender a história dos povos americanos.
De seu acervo, a máscara tribal de peixe coletada em 1820
Na medida que os materiais que apresentamos contribuem a conhecer melhor o nosso personagem, os seus interesses e as suas contradições, sua figura histórica vai se perfilando com mais precisão para a História das Ciências.
O “Viagem pelo Brasil” é a narrativa da viagem que tem como alvo um público amplo.
Mais do que discrepância com a narrativa, o que a documentação mostra é o processo de formação das ideias, as dúvidas e os anseios por reunir material suficiente para alicerçar suas ideias.
E, claro, as cartas e os diversos documentos às vezes trazem opiniões mais enfáticas e pontos de vista que na narrativa são amenizados.
O que as pesquisas de Martius têm a nos revelar nos dias de hoje?
Na perspectiva histórica, a obra de Spix e, sobretudo, de Martius nos legou, em primeiro lugar, abundantes materiais para o conhecimento da natureza e dos povos do Brasil no início dos Oitocentos.
Mas, além disto, Martius levou adiante trabalhos de sistematização no campo da botânica, que lhe permitiram definir o que hoje chamamos de biomas, o seus “Reinos de Flora”, estabelecendo uma caraterização do espaço natural que até hoje conserva validade na descrição do território do Brasil.
E no campo dos estudos linguísticos e etnográficos, a classificação que Martius fez das etnias do Brasil trouxe contribuições que até os nossos dias são reconhecidas pelos especialistas.
O livro é ricamente ilustrado. Como chegaram a essas imagens? O próprio Martius desenhava?
Embora Spix e Martius tenham pedido com insistência um desenhista, nunca chegaram a contar como esse profissional na equipe.
De fato, toda a documentação visual foi feita pelos dois em rota, sendo que Martius é autor da maior parte dos desenhos. Isto foi possível porque os dois bávaros tiveram uma educação ilustrada, na qual a prática das artes ocupava um lugar relevante.
Na pesquisa vocês se depararam com muitos materiais inéditos? Quais os principais acervos investigados?
Existem dois grandes conjuntos documentais para a expedição de Spix e Martius.
O mais rico é o da Biblioteca do Estado da Baviera, Munique, que possui o diário da viagem; os materiais preparatórios para as publicações da expedição, assim, por exemplo, esboços e primeiras formulações para os textos, diversas versões das ilustrações que fazem parte das obras; há também muita correspondência, sobretudo, de Martius, etc.
Esse material foi catalogado em 1992, de modo que o pesquisador conta com um bom auxílio para seu trabalho.
O segundo grande acervo é o da Academia das Ciências da Baviera. Aí está toda a documentação administrativa e científica relacionada com os preparativos da viagem, entre outras coisas, as instruções para a expedição; mas também há muita correspondência dos anos da própria viagem, documentos posteriores à viagem e projetos para as publicações, além de manuscritos de conferências sobre o Brasil, que Martius proferiu durante sua longa vida acadêmica.
Esses documentos não estão organizados e exige muito tempo trabalhar com esses materiais. No Brasil há pouca documentação sobre a expedição bávara, conservada principalmente no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e no Museu Imperial de Petrópolis. Esses materiais estão muito bem organizados. Cabe mencionar, também, as coleções botânicas, zoológicas e etnográficas nos respectivos museus de Munique. A conservação desse material é muito boa.
Em 2018 assistimos uma das maiores tragédias da museologia brasileira: o incêndio do Museu Nacional.
Havia algo relativo a Martius no museu?
No Museu Nacional temos o meteorito Bendegó. Esse meteorito recebeu especial atenção de Spix e Martius já durante a viagem pelo sertão da Bahia, inclusive eles fizeram uma excursão ao local onde, então, Bendegó se encontrava.
Essa excursão está detalhadamente descrita nas páginas do Viagem pelo Brasil e no Atlas que acompanha essa narrativa há uma bela prancha com duas vistas do meteorito.
Quiçá o destaque dado por Spix e Martius a essa peça em suas publicações tenha influenciado na decisão de trazê-la para o Rio de Janeiro.
Acredita que depois do incêndio no Museu Nacional a relação dos brasileiros com suas riquezas históricas, culturais e naturais melhorará?
A questão essencial para a nossa relação com as riquezas históricas, culturais e naturais passa primordialmente por uma mudança na educação, desde a fundamental, básica, até a Universidade. Sem um conhecimento sedimentado e de caráter humanista é muito difícil que os jovens e o homem comum se sensibilizem com essas questões e as valorizem.
E sem conhecer a história não há expectativas de melhoras.
Desejamos que estudos como o que realizamos sobre Martius possam contribuir com grãozinho de areia nesse processo.
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/o-brasil-exuberante-de-200-anos-atra-s/434573
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