Governo João Goulart acompanhou – e tentou mediar – episódio mais tenso
da Guerra Fria, revelam documentos
29 de setembro de 2012
Roberto Simon, O Estado de S. Paulo http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,como-o-brasil-viu-o-mundo-a-beira-do-abismo-nuclear,937785,0.htm
BRASÍLIA - Uma mensagem arrepiante chegou à Embaixada do Brasil em
Havana em 26 de outubro de 1962. O governo brasileiro estava "seguramente
informado" de que EUA e URSS entrariam em guerra "nas próximas 48
horas" caso não cessasse a instalação de mísseis soviéticos em Cuba,
alertava o chanceler Hermes Lima ao embaixador em Havana, Luiz Bastian Pinto.
E ordenava o ministro: "Realize imediata gestão junto ao governo
(cubano), apelando para a suspensão dos trabalhos".
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URSS deu garantias ao governo brasileiro contra mísseis em Cuba
Kennedy tinha razão de temer o poder soviético em Cuba
ESPECIAL: Crise dos mísseis
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Há 50 anos, a Crise dos Mísseis fazia o
mundo, incluindo o Brasil de João Goulart, caminhar à beira do precipício da
guerra atômica. O então líder soviético, Nikita Khruchev, decidira instalar
foguetes nucleares a quase 300 km de Miami, algo que o governo de John F.
Kennedy estava disposto a impedir a qualquer custo – até mesmo com a guerra.
Para
entender como o Brasil viu o mundo rumo ao holocausto nuclear, o Estado
mergulhou em centenas de telegramas secretos do Itamaraty, consultou
historiadores e entrevistou protagonistas.
No duelo entre os gigantes atômicos, o Brasil
parlamentarista de Jango, solidário a Cuba e dependente dos EUA, colheu
informações e chegou a tentar intermediar uma solução, enviando uma mensagem
direta de Kennedy a Fidel Castro.
O portador do recado era o chefe da Casa
Militar, general Albino Silva, recebido por Fidel em Havana naquele outubro de
1962.
O
Brasil entrou no imbróglio diplomático no dia 22 de outubro, quando o
embaixador dos EUA no Rio, Lincoln Gordon, entregou a Jango uma carta de
Kennedy avisando sobre a descoberta do arsenal soviético. Horas depois, o
presidente americano iria à TV anunciar que a 3.ª Guerra Mundial poderia
começar em breve.
No
texto, Kennedy convidava o Brasil a "discutir a possibilidade de uma ação
armada" em Cuba caso a crise não fosse solucionada pela diplomacia. Jango,
imediatamente, convocou cinco assessores ao Palácio da Alvorada para rascunhar
a resposta ao líder do "mundo livre".
"Debatemos
ao longo de toda tarde e, ao final, o (ex-chanceler) San Tiago Dantas
retirou-se a uma biblioteca para escrever a mensagem", relembra hoje, aos
83 anos, Almino Affonso, que participou da reunião como líder do governo de
Jango na Câmara.
Veio,
então, a resposta: o Brasil rejeitava qualquer "intervenção militar num
Estado americano, inspirada na alegação de incompatibilidade com seu regime
político" – ou seja, dizia-se um grande "não" a Kennedy.
A posição de Jango irritou os americanos, que repetidas vezes se
queixaram ao embaixador do Brasil nos EUA, Roberto Campos. Em seus telegramas,
o diplomata – que se tornaria ministro do Planejamento após o golpe de 1964 –
contava que estava sendo cobrado pela "tibieza" da posição do Brasil,
que não "compreendia" a ameaça do arsenal soviético no Caribe.
Em
reunião de emergência na OEA, o Itamaraty votou a favor do bloqueio naval a Cuba.
O Brasil, porém, diferentemente de Argentina, Peru, Colômbia e Venezuela,
recusou-se a enviar forças para implementar o cerco à ilha.
Missão Albino. Recentemente, o historiador James Hershberg, da Universidade
George Washington, descobriu que Kennedy voltou a procurar o governo brasileiro
no meio da crise. Dessa vez, porém, para que o embaixador do Brasil em Cuba
transmitisse a Fidel uma mensagem de oito pontos, incluindo uma promessa de não
invasão em troca do fim da boa relação entre Havana e Moscou.
"Uma
palavra explica a decisão de Kennedy de recorrer ao Brasil: desespero. Os EUA
discutiam várias opções e uma delas era essa mensagem via governo
brasileiro", explica Hershberg.
Segundo
o historiador, o embaixador americano e o chanceler brasileiro reuniram-se no
Rio na madrugada do dia 27. Além de um papel com a oferta, Gordon deu a Lima
uma instrução: o Brasil deveria dizer que a mensagem partira de Jango, e não de
Kennedy.
O
governo brasileiro aceitou transmitir o recado, só que com uma pequena mudança.
O portador da oferta a Fidel não seria o embaixador em Cuba, mas o chefe da
Casa Miliar de Jango, general Albino, que partiria logo a Havana. Roberto
Campos, nos EUA, avisava que os americanos viam o militar como simpático ao
bloco socialista e o próprio Kennedy o questionara sobre a filiação ideológica
de Albino.
Um
telegrama do Rio informava o diplomata em Havana sobre a iminente chegada do
general e o instruía a conseguir um "encontro imediato com Fidel".
Dois dias depois, o líder cubano falaria por mais de uma hora com Albino na
Embaixada do Brasil em Havana. Após ouvir o emissário de Jango, Fidel
respondeu-lhe que qualquer acordo para a retirada dos mísseis soviéticos
passaria pela devolução da base de Guantánamo a Cuba – algo impensável para
Kennedy.
O
líder cubano ainda se negava a permitir que inspetores internacionais fossem a
Cuba, pois considerava isso "ofensivo ao brio de seu povo", escreveu
Albino ao presidente Goulart.
No
entanto, enquanto o general brasileiro e o revolucionário cubano discutiam,
Kennedy e Khruchev já haviam chegado a um acordo, à revelia de Fidel. A URSS
retiraria os mísseis de Cuba em troca de garantias de que os EUA não invadiriam
a ilha e moveriam seus arsenais nucleares da Turquia e do sul da Itália.
Dias
depois, já longe do abismo nuclear, o embaixador brasileiro descreveu a
conversa que tivera com o chanceler cubano, Raúl Roa García, sobre o pacto
entre Kennedy e Khruchev. "Não somos brinquedo nas mãos das
superpotências!", teria bradado o chanceler de Fidel.
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