Entrevista concedida a Otávio Cabral, publicada em edição impressa deVEJA
“A SOCIEDADE É CULPADA”
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do Supremo Tribunal afirma que mais importante do que reclamar nas ruas da ineficácia dos governos é ir para a urna escolher bem os governantes
Marco Aurélio Mello ocupa a presidência do Tribunal Superior Eleitoral pela terceira vez desde 1996. Nesse período, não viu avanços na qualidade dos políticos, que continuam mais preocupados em se beneficiar dos cargos.
Mesmo se considerando um otimista, prevê uma eleição marcada pela troca de dossiês e aponta um enfraquecimento das instituições nos doze anos de governo do PT.
Há 24 anos no Supremo Tribunal Federal, ele comemora o resultado do mensalão, mas teme que o julgamento dos recursos reverta boa parte das condenações: “O quadro me faz lembrar a frase final de um livro de John Steinbeck, O Inverno da Nossa Desesperança: ‘Quando uma luz se apaga, é muito mais escuro do que se jamais tivesse brilhado’”.
►O senhor foi presidente do TSE em 1996 e 2006 e agora ocupa o cargo pela terceira vez. A política melhorou nesse período?
Infelizmente não. Continuamos com candidatos que buscam cargos não para servir à sociedade, mas para se servir dela.
►Nas eleições de 2010 houve 30% de votos inválidos. A insatisfação evidenciada nas manifestações indica que esse índice possa ser maior em 2014?
O local de protesto por excelência é a urna. O eleitor precisa perceber que o voto dele tem um peso relativo, que é unitário, mas quando se soma a tantos outros resulta na escolha do representante que praticará atos que repercutirão na vida dele — tenha ele comparecido ou não no dia da eleição.
Não é mediante a apatia nem o protesto extremado que chegaremos no Brasil a dias melhores. Chegaremos com a participação de todos, escolhendo os melhores candidatos. Mais importante do que o “vem para a rua”, que virou moda, é o “vem para a urna”. O protesto eficiente não se faz queimando lixeiras, mas participando da vida pública.
►Nos últimos meses, houve uma série de manifestações no Brasil. Agora, há rolezinhos em shopping centers. A sociedade e as autoridades estão sabendo lidar com essas situações?
Aquela crença de que o brasileiro é pacífico é falsa. O brasileiro protesta, sim. A situação chegou a um limite extremo, os serviços prestados são tão ruins que há um inconformismo generalizado. Mas a sociedade não é vítima quando a situação política chega a esse ponto, ela é a culpada.
Reclama do governo e se esquece de que quem colocou os políticos lá foi ela própria. A manifestação é uma maneira legítima de mostrar sua insatisfação com a vida nacional. Razões para protestar não faltam. Ainda mais com a carga tributária que temos, que mais parece um confisco. Mas todos precisam perceber que são culpados pela situação.
►O senhor teme que essa campanha seja marcada por troca de dossiês e agressões?
Eu sou um homem otimista. Mas, infelizmente, o que se tem no horizonte é que será uma campanha conturbada. Aí o papel da Justiça Eleitoral cresce. E me dá uma nova preocupação, de que prevaleça a ótica do minimalismo judicial, da menor interferência possível nas campanhas. O Judiciário não pode se omitir e precisa agir para que prevaleçam as normas que tentam dar equilíbrio à disputa. Equilíbrio que já é bastante mitigado com o instituto da reeleição.
►O Supremo vai decidir se pessoas jurídicas poderão fazer doações a candidatos ou apenas pessoas físicas. O sucesso da campanha do PT para arrecadar dinheiro para pagar a multa dos mensaleiros não é um indício de que a restrição das doações beneficiará o partido que estiver no poder?
O que se aponta é que o fim do financiamento por pessoas jurídicas prejudica a oposição e beneficia aqueles que estão na caminhada para a reeleição. Mas a consequência não pode ser potencializada em detrimento do meio. O que precisamos saber é se essas doações estão de acordo com a Constituição. E o que ocorre com essas doações? Alguém doa por causa da ideologia do candidato? Não! Não podemos acreditar em altruísmo.
Essas doações visam a receber um troco depois que o político for eleito, por isso sai caríssimo para a sociedade. Eu sou favorável ao financiamento estritamente público, com regras rígidas. Isso acabaria com esse troco, economizaria dinheiro público e poria fim a esse trunfo da esperteza.
►O mensalão foi um ponto fora da curva, como definiu seu colega Luís Roberto Barroso?
Qual seria essa curva? A dos interesses nacionais? A dos direitos constitucionais? Então o julgamento estava dentro da curva. É uma expressão que não se coaduna com a realidade. O Supremo julgou a partir das provas do Ministério Público. Começou a se falar que alguém teria sido condenado apenas com base no domínio dos fatos. Não foi isso, muito embora quem tinha o domínio dos fatos, de fatos que implicavam em ruptura da ordem jurídica, também deveria ser condenado como coautor. Estive lá o tempo todo, prestando atenção aos votos, e posso garantir que nós julgamos de acordo com as provas.
►Qual a lição desse julgamento?
Um alerta de que a lei é editada para viger de forma linear, alcançando todos os cidadãos, inclusive os poderosos.
►O julgamento dos embargos infringentes pode alterar o resultado do mensalão?
Pode. E, pelas sinalizações dos atuais integrantes do tribunal, é provável que venham a ocorrer a reversão da condenação pelo crime de formação de quadrilha, prevalecendo a tese de coautoria; o afastamento da cassação de mandatos, como já ocorreu no recente caso de Ivo Cassol; a diminuição de algumas penas; e o cancelamento da condenação por lavagem de João Paulo Cunha. Então a sociedade ficará decepcionada.
O quadro me faz lembrar a frase final de um romance de John Steinbeck, O Inverno da Nossa Desesperança: “Quando uma luz se apaga, é muito mais escuro do que se jamais houvesse brilhado”.
►O senhor acha que o julgamento do mensalão mineiro terá o mesmo final do mensalão petista?
Processo para mim não tem capa, tem conteúdo. Estarei lá para ouvir o relator e o revisor. Votarei de acordo com a convicção que firmar. Penso que o tratamento será o mesmo da ação penal 470.
►A situação das prisões brasileiras é medieval. A falta de ação dos governos para melhorá-las contribui para o aumento da criminalidade?
Exatamente. A população carcerária provisória chegou ao mesmo número da população definitiva, quando se prega na Constituição que só se pode prender depois de assentada a culpa. Mas, no afã de dar uma satisfação vã à sociedade, transformou-se a regra — o cidadão responder ao processo em liberdade — em exceção.
Com isso, o Estado não respeita a integridade do preso. As condições são desumanas e não há ressocialização dos presos. Por isso os índices de reincidência são altíssimos. O preso não sai reeducado para a vida em sociedade. Ele sai embrutecido.
►E como resolver esse problema crônico?
Defendo a privatização dos presídios, o que sairia muito mais barato para a sociedade do que o estado atual.
►O PT está há doze anos no poder.Qual o legado que deixa para o país?
O legado maior foi o aumento da assistência social, uma providência que a meu ver não pode ser tomada como definitiva. Essas bolsas criadas representaram um passo adiante. Mas precisamos ter em mente que o homem necessita acima de tudo de oportunidades. E a oportunidade passa em primeiro lugar pela educação e depois pelo mercado. Não só por assistencialismo.
►E quanto às instituições?
Temos de admitir a realidade: houve um evidente desgaste institucional nesses doze anos de governo do PT. Com ataques inaceitáveis ao Ministério Público, ao Judiciário e à liberdade de imprensa.
►O senhor aprova a iniciativa do PT de propor uma Assembleia Constituinte para a reforma política?
Há um vício no Brasil de acreditar que podemos ter melhores dias mediante novas leis. Mas nós não precisamos de novas normas. Precisamos é de homens, principalmente públicos, que observem as já existentes.
►O senhor está no Supremo há 24 anos. A qualidade do tribunal vem caindo ao longo desse período?
Considero que com a velha guarda o Supremo era mais conservador. Ultimamente, passamos a atuar em temas que eram verdadeiros tabus. Por exemplo: a interrupção da gravidez no caso da anencefalia. Quando eu dei uma liminar afastando a punição à parturiente e à equipe médica que auxiliasse na interrupção da gravidez, em 2004, a decisão foi cassada. Anos mais tarde, levei o processo de novo ao plenário, já com um colegiado totalmente diferente, e a votação teve 8 votos a favor. Por isso, digo que hoje é um tribunal mais aberto e menos conservador.
►Alguns advogados defendem a ideia de que os julgamentos de ações penais não sejam transmitidos pela TV Justiça. 0 senhor concorda?
Tenho de defender a filha bonita: foi em minha gestão na presidência do Supremo que a TV foi criada. O aspecto positivo da TV Justiça é a publicidade das decisões. A pessoa que é envolvida em um processo tem a privacidade mitigada, porque pela Constituição o processo é público. O sigilo é exceção.
Quando envolve homem público, que deve contas aos contribuintes, essa publicidade deve ser até maior. Eu não vejo a possibilidade de um retrocesso na transparência e na transmissão das sessões, o que levaria o Supremo ao campo nefasto do obscurantismo.
►O senhor considera que cenas como as trocas de ofensas entre Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski abalam a imagem do Judiciário?
É claro que desgastam a instituição. É normal que em um colegiado com esse gabarito, com essa envergadura, haja discussões de ideias. E que reine ali a impessoalidade. Tenho de admitir que há um desgaste para a instituição.
O ministro Ricardo Lewandowski, perante a população em geral, está muito desgastado depois das colocações feitas pelo ministro Joaquim Barbosa. É claro que nós não estamos ali para concordar com o relator. Mas, se vamos divergir, nós temos de nos policiar para manter a coisa em um padrão elevado.
Somos todos iguais, o presidente é apenas um coordenador. E, ao coordenar, deve ser um algodão entre os cristais. O que não vem sendo o caso.
►O senhor acha que Joaquim Barbosa deixará o Supremo para se candidatar a presidente da República?
Eu acho que ele não deveria sair do Supremo. Mas eu o vejo um pouco cansado do dia a dia do Judiciário. Posso cometer uma inconfidência porque ele não me pediu que guardasse reserva. Ao entrar para a sessão final do ano judiciário de 2013, ele me disse que já estava participando de uma sessão daquela pela 11ª vez. E afirmou que para ele já estava de bom tamanho. Eu respondi que estava entrando pela 24ª vez e não estava cansado nem insatisfeito. Por aqui se ventila muito que ele estaria para sair para se candidatar. Que ele seja muito feliz na nova seara.
►Seus críticos gostam de chamá-lo de “ministro do voto vencido”. Isso o incomoda?
Jamais incomodou. Eu tenho de reconhecer que a atuação da TV Justiça foi muito boa para mostrar à cidadania em geral o meu papel como julgador. Por que fico vencido? Porque eu observo a minha ciência e consciência e nada mais. E acredito muito que, se há um colegiado, é para cada qual dar a sua colaboração. Eu nunca busco formar na corrente majoritária. O que busco até hoje, e já estou há 35 anos julgando, é a paz com a minha consciência.
►O senhor tomou várias decisões que foram criticadas, principalmente a concessão do habeas corpus que permitiu a fuga do banqueiro Salvatore Cacciola. Arrepende-se dessa decisão?
Eu reafirmei a decisão quando o tema voltou ao plenário, e sempre estive com a consciência muito tranquila. Se precisasse, tomaria a mesma decisão novamente.
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