► A FLORESTA DE CHOCOLATE

Como os cacaueiros da Bahia conservam a Mata Atlântica, produzem amêndoas premiadas e querem alimentar o turismo na região

ALINE RIBEIRO, DE ILHÉUS
04/05/2014 10h00 - Atualizado em 04/05/2014 
CONSERVAÇÃO Uma floresta de chocolate no sul da Bahia. No sistema cabruca, o cacau cresce sob a copa da Mata Atlântica (Foto: Stefan Kolumban)
Como na uva que dá origem ao vinho, ou na oliva que dá vida ao azeite, é do “terroir” do cacau que dependem a qualidade e a identidade de um chocolate. O termo francês, sem um correspondente exato em outras línguas, traduz a relação mais íntima do fruto com o solo, o clima, a altitude e as chuvas que caem nas terras onde é cultivado. O terroir do cacau do sul da Bahia caiu nas graças do seleto mercado de chocolates finos. Especialmente porque, além das condições ideais de plantio, os cacaueiros da região têm o atributo de preservar a Mata Atlântica, que guarda uma das maiores biodiversidades do mundo.  “A Bahia é o único lugar do planeta com florestas de chocolate”, afirma o baiano Eduardo Athayde, diretor do Worldwatch Institute no Brasil. “Temos cacau de alta qualidade e uma riqueza de fauna e flora incomparável.”
Graças a um esforço de produtores e organizações entusiastas da preservação da floresta, as amêndoas baianas começaram a deixar a condição de commodity para virar iguaria nas mãos de chocolateiros interessados em explorar as sutilezas de sabores e aromas do fruto. Embora o método para transformar o cacau convencional em gourmet seja minucioso, vale a pena financeiramente. A tonelada de cacau comum é vendida na Bolsa de Nova York por cerca de US$ 3 mil. Produtores de cacau fino conseguem até US$ 5.500 pela tonelada. A produção gourmet ainda é pequena (só 1% do mercado brasileiro), mas suficiente para despertar a atenção de grandes empresas e de chefs estrelados.
Além de agradar ao paladar, esse cacau tem sabor ecológico. Há pelo menos 250 anos, o cacau do sul da Bahia é produzido sob a sombra da Mata Atlântica. O sistema, conhecido pelo nome cabruca, associa o plantio à conservação de árvores raras, como pau-brasil e jequitibá, assim como dos animais que transitam por esses corredores de florestas. Cabrucar – do verbo brocar – é um termo regional que significa abrir buracos na mata para plantar o cacau. A cabruca, segundo seus praticantes, preserva 13% das espécies de árvores de uma mata original. “Sem contar seu papel para a manutenção de outros importantes serviços ambientais, como a regulação do fluxo hídrico e a conservação de solo”, diz Durval Libânio, presidente do Instituto Cabruca. Cientistas do Jardim Botânico de Nova York registraram uma concentração recorde de biodiversidade na região: 476 diferentes espécies vegetais por hectare.
 

O ALQUIMISTA O produtor João Tavares em sua fazenda. Suas amêndoas foram premiadas no  Salão do Chocolate, em Paris (Foto: Thiago Pereira)
No passado, o cacau sombreado pela floresta transformou o sul da Bahia num Eldorado. Atraídas pela riqueza das árvores dos frutos de ouro, famílias inteiras migravam de outras regiões do Nordeste. O vigor econômico da região, retratado tantas vezes na literatura do escritor Jorge Amado, em obras como Cacau ou Terras do Sem Fim, concentrou o dinheiro nas mãos de poucos. Os coronéis reinavam tranquilos até que, em 1989, a chegada de uma praga conhecida por vassoura de bruxa arrasou as plantações. Se antes o cacau era considerado o fruto dourado responsável pela pujança local (daí a expressão “ele é cheio do cacau”), depois da doença se transformou no protagonista de uma tragédia que mudou o destino de quase 3 milhões de pessoas. A praga afetou o plantio em 93 municípios, extinguiu 250 mil empregos e provocou o êxodo de 800 mil homens, mulheres e crianças das fazendas para as cidades. As periferias das zonas urbanas incharam. A produção de cacau caiu de 400.000 toneladas por ano para 120.000. Deprimidos, muitos chefes de família se suicidaram.
Nos últimos anos, os produtores vêm investindo em novas variedades mais resistentes. Alguns tiveram de replantar todos os cacaueiros. Mesmo assim, a produção hoje é uma fração do que era. Para compensar, o caminho encontrado por produtores como João Tavares foi investir em qualidade. Há 12 anos, Tavares passou a frequentar bibliotecas em busca de literatura científica para alcançar a excelência do grão. “Havia muitas pesquisas disponíveis, mas elas não dialogavam com o campo. Foi aí que comecei meus experimentos”, diz. Numa sucessão de tentativas e erros, transformou o modo de beneficiar as sementes em suas três fazendas. Obteve pequenas inovações, que alteraram profundamente o resultado do produto. Uma delas diz respeito à fermentação. Tradicionalmente, os cochos onde as amêndoas fermentam têm um padrão retangular. Ao perceber que a temperatura nos cantos da caixa é diferente do centro, Tavares arriscou usar um modelo redondo para dar uniformidade. Ficou falado na vizinhança. Certa vez, um produtor dos arredores o viu passar pela estrada carregado daquelas circunferências enormes de madeira. Nasceu ali o bochicho de que se tratava de banheiras de ofurô.
O resultado de suas invenções? As amêndoas de Tavares estão entre as mais premiadas do mundo. Por dois anos seguidos (2010 e 2011), derrotaram cerca de 120 países e conquistaram o Cocoa of Excellence, no Salão do Chocolate, em Paris. O feito colocou o Brasil no mapa dos países produtores de cacau fino. “Meu trabalho não é dar sabor ao cacau, mas suprimir os defeitos dele, como acidez, amargor e adstringência”, afirma. Tavares tem contrato com grandes empresas brasileiras, como a Harald, a Amma Chocolates e a Nugali. Neste momento, diz que está em negociação com um chef francês cujo nome ainda mantém em segredo. A demanda é tamanha que, para este ano, não tem mais um grão para vender. Começará a comprar cacau dos vizinhos para beneficiar em suas fazendas – hoje em expansão para dobrar a produção.
A vontade de produzir um chocolate tão bom quanto o europeu despertou o empresário Ernesto Neugebauer, dono da Harald, para o cacau baiano. “Nosso país nunca teve tradição de cuidar dos ingredientes. Queremos mudar isso”, afirma. No ano passado, a Harald lançou uma linha com cacau fino de origem, a Melken Unique. Os produtos – de chocolate de cobertura a barras – representam hoje 3% do negócio, e a ideia é que a linha cresça 20% ao ano. Mais que do interesse do consumidor, o salto depende da disponibilidade de matéria-prima. “Alinhado com a evolução econômica, o Brasil passa por uma revolução gastronômica que começou com o vinho, passou pelo café e agora chega ao chocolate”, diz Neugebauer. “O brasileiro começa a compreender o que é um chocolate de verdade.” Para ser rotuladas como gourmet, as amêndoas precisam cumprir pelo menos 30 quesitos de boas práticas. Ainda é difícil encontrar agricultores atentos a todas.
Nem só os grandes produtores da região enxergaram as vantagens de migrar para o cacau fino. Um assentamento ligado ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) colocou seu nome, Terra Vista, em tabletes feitos de frutos com certificação orgânica – tudo plantado ali. “Se vendo só a semente, fico com 7% do dinheiro da cadeia. Os outros 93% saem pela porteira”, diz Joelson de Oliveira, líder do assentamento. Os moradores se preparam para aumentar a produtividade. Investirão no melhoramento genético das sementes e no manejo correto do plantio, para crescer de 15 para 50 arrobas de cacau por hectare. “Em cinco anos, o cacau fino renderá cinco salários mínimos por família assentada”, diz Oliveira. Ele coleciona metas de rigor empresarial.
A inauguração de uma fábrica para processar as amêndoas em liquor, a base do chocolate, é o novo frenesi da região. Batizada de CooperBahia, a estrutura erguida na cidade de Ubatã, ao custo de R$ 15 milhões, é um passo fundamental para fechar o ciclo de produção – do grão à barra. Financiada pelo Grupo Odebrecht, a fábrica terá capacidade para industrializar pequenas quantidades de agricultores que tentam transformar suas lavouras em gourmet. “Agora eles podem agregar valor ao cacau”, afirma Eimar Sampaio, diretor agrícola e comercial da CooperBahia.
Emolduradas por paisagens montanhosas e praias de areia fina, as florestas de cacau do sul da Bahia são naturalmente atraentes aos visitantes. “Aqui há belezas naturais, aeroporto, boas estradas, um sistema que conserva a floresta e chocolate de qualidade”, diz Libânio, do Instituto Cabruca. Para ele, ao oferecer degustação de chocolates finos locais, a região tem tudo para entrar no roteiro do turismo gastronômico. “Assim como acontece com o vinho, no Sul do Brasil, temos potencial para entrar na rota internacional do cacau.”

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