A obscura ameaça de privatização das águas
Pela porta dos fundos, sem
nenhum debate com a sociedade, mega-grupos empresariais buscam brecha na
legislação que lhes permita controlar fontes hídricas brasileiras. Veja como
agem e quais as possíveis consequências
Por Roberto
Malvezzi (Gogó)
Esses dias fui entrevistado pela Folha de São Paulo sobre uma nova investida da Agência
Nacional de Águas para a criação do “mercado de outorga de águas”. O assunto é
antigo e, vez em quando, se mexe no túmulo.
A proposta vem do Banco Mundial e FMI para
a criação do mercado de águas como a melhor forma de gerir a crescente crise
hídrica global. Como no Brasil a água é um bem da União (Constituição de 1988)
ou um bem público (conforme a lei 9.433/97), ela não pode ser privatizada, nem
mercantilizada.
Acontece que há tempos o grupo que representa o pensamento dessas
instituições internacionais no Brasil – e das multinacionais da água — busca
brechas na lei para criar o mercado de águas, pelo mecanismo de compra e venda
de outorgas.
Já que a água não pode ser um bem privado, então busca-se criar o
mercado das outorgas (quantidades de água concedidas pelo Estado a um
determinado usuário), para que possam ser vendidas de um usuário para outro.
Hoje, o mercado de outorgas é impossível.
Quando um usuário que obteve uma outorga não utiliza a água demandada, ela
volta ao poder do Estado. Não pode ser transferida para outro usuário, muito
menos ser vendida.
A finalidade é óbvia: evitar que se crie especulação
financeira em torno de um bem público e essencial, evitando a compra e venda de
reservas de água.
A lei já tem uma aberração, que é a outorga
preventiva. Uma empresa pode reservar para si um determinado volume de água até
que seu empreendimento possa ser implantado. Essa outorga preventiva pode ser
renovada mesmo quando o prazo expirou sem que nenhuma gota d’água tenha sido
utilizada.
Onde o mercado de águas – sob todas as
formas – foi criado o fracasso foi mortal, literalmente. Na Bolívia gerou a
guerra da água, na França, depois de alguns anos, o serviço voltou ao controle
público. Assim em tantas partes do mundo. Mas o Brasil é tardio e colonizado.
Muitos de nossos agentes públicos também o são.
Pela nossa legislação existe uma ética no
uso da água, isto é, em caso de escassez a prioridade é o abastecimento humano
e a dessedentação dos animais. Portanto, prioridades como essas, estabelecidas
em lei, não podem ser substituídas pelo mercado.
Em momentos críticos como
esse, exige-se intervenção do Estado através do organismo competente para
determinar a prevalência das prioridades sobre os demais usos.
Porém, se as regras forem mudadas para que
passe a prevalecer o mercado, uma empresa de abastecimento de água, para ganhar
dinheiro, poderá vender sua outorga — total ou parcialmente — para outra
companhia: de irrigação, por exemplo.
Nesse caso, sacrificaria as pessoas em função
do lucro e da empresa que pode pagar mais pela água.
Portanto, não é só uma questão legal. É,
antes de tudo, ética, humanitária e protetora dos direitos dos animais.
A
proposta inverte a ordem natural e dos valores, colocando o mercado como senhor
absoluto da situação, exatamente em momentos de escassez gritante.
É sintomático que essas observações feitas à Folha de São Paulo não tenham sido publicadas. Apareceram
apenas as vozes dos defensores do mercado de águas.
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