24/05/2013
às 15:00 \ Vasto MundoArqueólogos comprovam: habitantes da primeira colônia inglesa nos EUA recorreram ao canibalismo para sobreviver à ineficiência do sistema coletivista em que viviam
Texto de Duda Teixeira, publicado em edição impressa de VEJA
OS OSSOS DO SOCIALISMO
Os habitantes da primeira colônia inglesa nos Estados Unidos recorreram ao canibalismo para sobreviver à ineficiência do sistema coletivista em que viviam
Aos 14 anos, a jovem Jane chegou em um navio de suprimentos a Jamestown, a primeira colônia inglesa na América, em 1609. A causa de sua morte, meses depois, é um mistério, mas sabe-se que seu cadáver foi desmembrado para ser devorado por um grupo de colonos. Seu crânio foi aberto e a carne do seu rosto foi destrinchada por uma pessoa sem experiência com a faca, o que pode ser constatado pela hesitação das marcas deixadas na testa e na mandíbula.
A tíbia foi descarnada por alguém com maior conhecimento do ofício. Esses ossos, encontrados no ano passado no que sobrou do porão de uma antiga cozinha, são o primeiro indício arqueológico do canibalismo nas colônias pioneiras, onde hoje fica o estado americano de Virgínia. Essa prática já havia sido registrada em cartas e outros relatos históricos. A descoberta foi revelada no início deste mês.
O horripilante destino de Jane, como a garota foi batizada pelos arqueólogos, é uma exceção, restrita à penúria enfrentada pelos moradores de Jamestown no inverno do fim de 1609 e início de 1610. Uma anomalia daquelas que só acontecem quando o ser humano atravessa condições
extremas o bastante para fazer desmoronar qualquer tabu.
Jane foi devorada por seus pares como consequência do fracasso do modelo de produção coletiva implantado nos primeiros anos da colonização dos Estados Unidos. A propriedade era comunitária, e o fruto do trabalho era dividido igualmente entre todos. Era, portanto, uma experiência que antecipava os princípios básicos do comunismo. Deu no que deu.
Sem estímulo para o trabalho, os habitantes de Jamestown eram incapazes de produzir um excedente de alimentos para os períodos de estiagem ou de inverno. No ano em que Jane foi canibalizada, seis de cada dez colonos sucumbiram à fome. A tragédia levou os primeiros americanos a rever o modelo econômico e a instituir a propriedade privada.
A partir desse momento, quem trabalhasse melhor ganharia mais e poderia se resguardar para os períodos de vacas magras. Foi essa mudança, nascida do trauma de um inverno em que os colonos caíram na selvageria, que permitiu aos Estados Unidos se tornar o maior gerador de riqueza do planeta e o berço do capitalismo moderno.
Jamestown, um forte triangular nas proximidades do Rio James, foi fundada em 1607. No início, a relação entre os ingleses e os integrantes da tribo powhatan era amigável. Os índios davam-lhes alimentos em troca de peças de metal. “Não havia moeda naqueles tempos. Tudo era feito por escambo”, diz o arqueólogo americano William Kelso, que encontrou os ossos de Jane.
Foi naquele período que uma menina de 11 anos, Pocahontas, se enamorou do capitão John Smith, que liderava os colonos. A relação entre os dois, edulcorada recentemente em desenho animado pela Disney, acabou em 1609, quando o capitão foi ferido e retornou à Europa. Os colonos já não tinham nada para oferecer aos índios em troca de comida.
Findo o comércio, começaram as hostilidades. “Os índios sitiaram o forte. Ninguém podia sair para conseguir alimentos”, diz Kelso. Situação parecida aconteceu em outra colônia, Plymouth, fundada pelos colonos que chegaram no navio Mayflower e que também adotaram a propriedade comunitária. Eles venderam a roupa do corpo aos índios em troca de milho. Outros roubaram grãos dos índios. Alguns se tornaram seus escravos.
No auge da penúria de 1609, em Jamestown, centenas de novos habitantes chegaram em navios de suprimento, entre os quais Jane, e comeram todo o alimento disponível em três dias. A fome veio em seguida. Segundo um relato posterior do então governador, George Percy, os moradores
devoraram cavalos, cachorros, gatos e ratos. Depois, comeram sapatos e todo o couro que encontraram.
Quando as opções se esgotaram, começou o canibalismo. Percy contou que ordenou a execução de um dos seus homens, que matou e canibalizou a esposa grávida. Se não fosse o sistema de produção fracassado, a situação dificilmente teria chegado a esse ponto. O coletivismo fora implantado
pela Companhia da Virgínia, empresa responsável pela empreitada em Jamestown, por temor de que, se os colonos tivessem sua própria terra do outro lado do Atlântico, deixariam de enviar o que produziam para Londres.
Apesar do solo fértil, da abundância de peixes, das matas ricas em veados e perus, porém, os homens não encontraram estímulos para trabalhar. “Os colonos não tinham o mínimo interesse na terra”, escreveu o historiador americano Philip Bruce no fim do século XIX. A paz e a prosperidade só começaram a se tornar realidade em Jamestown a partir de 1611, com a chegada do administrador inglês Thomas Dale.
Ele se surpreendeu ao notar que, em meio à fome, os homens dedicavam-se a vagabundear pelas ruas. A raiz do problema, ele percebeu, era o sistema comunitário. Dale então determinou que cada homem deveria receber três acres de terra e só precisaria trabalhar um mês por ano para a matriz. A decisão despertou os traços hoje bem conhecidos do capitalismo americano: o empreendedorismo e a aptidão para a competição.
Mais produtivos, os colonos passaram a vender milho aos índios em troca de peles de animais. O comércio trouxe a paz. Em 1775, a economia americana já era 100 vezes maior do que em 1630. Os americanos, nesse tempo, também já eram mais altos que os ingleses. Antes, chegaram ao máximo da degradação humana.
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