Editorial do jornal O Estado de S. Paulo
AS ENTRANHAS DO CHAVISMO
Como era previsível, os filhos de Chávez, na ausência do Comandante, estão se devorando. Uma gravação divulgada pela oposição da Venezuela mostra que o esfarelamento da “revolução bolivariana” não se limita à incapacidade administrativa do presidente Nicolás Maduro e à corrupção galopante. Trata-se apenas de uma fração de informação, mas a partir dela já é possível ter uma ideia clara das forças em confronto e do que elas são capazes.
Segundo a oposição, a gravação é de uma conversa entre o apresentador de TV Mario Silva, que é um dos principais porta-vozes do chavismo, e um dos chefes do G2, o serviço de inteligência cubana, identificado como Aramis Palacios – tenente-coronel que estaria na Venezuela a serviço do ditador de Cuba, Raúl Castro, para orientar o governo de Maduro.
No diálogo, Silva diz que está com um “temor visceral” de que o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, esteja preparando um golpe de Estado.
A disputa de poder entre Maduro e Cabello não é um fato novo. Os dois passaram todo o período da agonia de Hugo Chávez jurando lealdade ao caudilho e unidade absoluta nas fileiras chavistas. Esse discurso, ao que parece, não sobreviveu a Chávez. Escolhido pelo Comandante como seu sucessor, Maduro é o “homem de Havana”, colocado na cadeira presidencial para preservar a relação que tem garantido o precioso financiamento venezuelano ao regime cubano.
Cabello, por sua vez, é visto como um empecilho pelos irmãos Castro. Militar que participou da fracassada tentativa de golpe liderada por Chávez em 1992, Cabello seria seu sucessor natural na presidência – era, afinal, o que previa a Constituição venezuelana -, mas acabou preterido porque Cuba o teria vetado.
Cabello controla o Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), onde é conhecido como “novo Stalin”, e tem influência sobre uma parte significativa do aparato de segurança do regime, razão pela qual é visto há tempos como uma ameaça de desestabilização graças a sua sede de poder e de dinheiro. Empresário, Cabello tornou-se um dos homens mais ricos da Venezuela e seu nome é frequentemente relacionado a casos de corrupção e ao narcotráfico.
Na gravação revelada pela oposição, Mario Silva diz ao emissário cubano que “a única forma de deter Cabello é mostrar que ele é um corrupto e que existe uma prova confiável de que o Comandante sabia disso”. Segundo o apresentador, Maduro tem de ser alertado para o perigo de perder o controle das Forças Armadas para Cabello, “o que poderia levar a um golpe de Estado”. E chama a atenção para o risco de divisões dentro do Exército.
A gravação surge num momento de especial fragilidade de Maduro, em que a Venezuela enfrenta uma grave crise de desabastecimento, que começa a corroer o patrimônio carismático que Chávez legou. Por causa disso, a reação de Maduro à divulgação do áudio foi aparecer em diversos eventos ao lado de militares, para tentar mostrar quem é que manda.
Enquanto isso, Cabello reafirmou sua “fidelidade absoluta” ao governo, mas o PSUV ficou em silêncio e alguns governistas timidamente se limitaram a questionar a autenticidade da gravação. Já o apresentador Mario Silva, que não é conhecido pela moderação, preferiu apelar às teorias da conspiração, ao dizer que o diálogo foi uma “boa montagem” feita pelos “sionistas”. Em seguida, anunciou que está deixando seu programa por “motivos de saúde”.
Dadas as circunstâncias, a oposição pode ter sido usada como mero veículo para a exposição pública das entranhas do chavismo e das manobras de Cabello, pois trata-se de algo que serve a Maduro e ao consórcio que tenta sustentá-lo no poder. Na gravação, Mario Silva chega a dizer que Cabello está se aproveitando da crise econômica, por meio de empresas de fachada e evasão de divisas, para enriquecer ainda mais. “Estamos metidos em um mar de m…, compadre”, disse o apresentador a seu amigo cubano, resumindo, com rara franqueza, a situação venezuelana.
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