O descaso com o sistema penitenciário brasileiro ameaça a vida de detentos nas prisões e de cidadãos fora delas. O desafio é prender menos e melhor
ALBERTO BOMBIG, VINICIUS GORCZESKI E MARCELO MOURA
25/01/2014 10h00 - Atualizado em 25/01/2014
O governante brasileiro é um obcecado. Poucas coisas conseguem afastar sua mente de seu maior foco de atenção: a urna.
Durante quatro anos, políticos e seus assessores despejam dinheiro em áreas que eles – ou seus aliados – consideram prioritárias.
Na grande maioria, são consideradas “obras que dão votos”, tudo feito com o olho fixo na urna. Setores como educação e saúde já são protegidos por lei, o que lhes garante investimento mínimo dos governos.
O sistema penitenciário brasileiro não tem a mesma sorte. As insuficientes e violentas prisões do país mal recebem os recursos alocados para sua manutenção básica.
Nas últimas décadas, o sistema penitenciário brasileiro transformou-se numa das grandes vítimas da perversa lógica eleitoreira da política nacional.
“Uma política que respeita os presos não dá voto”, afirmou Douglas Martins, juiz do Conselho Nacional de Justiça, em entrevista a ÉPOCA na semana passada. “Quem defende os presos geralmente é encarado como defensor de mordomias para bandidos.”
Essa ideia é uma enorme distorção da realidade. O abandono dos presídios no Brasil custa caro a toda a população, na forma do aumento da criminalidade do lado de fora das cadeias.
Grupos de presos controlam o crime nas ruas de inúmeras cidades do país – e exportam, de uma forma ou de outra, o terror que vivem em suas celas para o restante da população.
O dinheiro investido no sistema penitenciário não tem quase prestígio algum. Perde de lavada dos recursos investidos no combate ao crime do lado de fora, que cumpre seu dever de afastar criminosos do convívio social, mas também ajuda a alimentar o barril de pólvora das prisões.
Segundo pesquisa do Instituto Avante Brasil, com a reintegração social de presos foi gasto R$ 1,1 bilhão em 2008, ante os R$ 39,5 bilhões tomados pela segurança pública.
Em 2012, os presos receberam pouco mais que o dobro, R$ 2,3 bilhões, mas a distância para a segurança, destino de R$ 52,7 bilhões naquele ano, continua gigantesca.
“O valor é baixíssimo, certamente o que chega para essa função, no final das contas, é uma parcela muito menor”, afirma Augusto de Arruda Botelho, presidente do Instituto de Defesa ao Direito de Defesa (IDDD).
“Os gastos deveriam ser focados na ressocialização, que é uma garantia de que você terá de não gastar mais na construção de novos presídios. Esses recursos são muito mais um investimento que uma despesa.”
Os investimentos no sistema penitenciário não acompanham o ritmo das prisões. Só no Estado de São Paulo, de janeiro a novembro de 2013, a Polícia Militar fez 143.044 prisões.
“O Brasil prende muito e desnecessariamente”, diz Botelho.
Segundo especialistas, o que está por trás do encarceramento em massa que desemboca em violência são as rigorosas leis brasileiras, que encontram respaldo no Judiciário.
Nos últimos 15 anos, elas ajudaram a diminuir a criminalidade, mas solaparam a capacidade de controle e regeneração dos presídios. Uma lei de medidas cautelares, lançada em 2012, buscou contornar esse problema, ao priorizar as penas alternativas. Por ela, cairiam os números de presos provisórios nas cadeias – o que não aconteceu.
“Os juízes não vêm adotando o que diz a lei. Alegam que falta fiscalização sobre os que cumprem as penas alternativas e por isso mantêm as pessoas presas. É um equívoco”, afirma Botelho.
Outra explicação tem raiz histórica. “No país, o preconceito e a rejeição são a forma pela qual a nossa sociedade lida com a população carcerária”, afirma a socióloga Camila Nunes Dias, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
“Quando não valorizamos a vida do preso, não podemos querer que esse indivíduo dê valor a nossa vida nas ruas.”
O resultado dessa equação é uma multiplicação da população carcerária. Em 1990, havia no país 90 mil presos. Em 2012, esse número atingiu 548 mil – um aumento de 508%, em comparação com 105% dos gastos no setor.
Nesse período, a população brasileira cresceu 31% – de 147 milhões para 193 milhões, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mais significativo ainda é o aumento de presos provisórios – sem condenação, ou seja, que podem ser inocentes – ocupando vagas na cadeia.
Eram 16 mil em 1990 e hoje são 195 mil, uma expansão de 1.118%. Em todo o país, 38% dos encarcerados estão em situação provisória, sem julgamento. O número de provisórios multiplicou-se por 12, enquanto o total de vagas no sistema cresceu pouco.
Elas passaram de 136 mil para 310 mil, entre 2000 e 2012, um aumento de 127%. O que acontece com as prisões? Ficam superlotadas, receita ideal para rebeliões, fugas, aumento da periculosidade dos criminosos e fortalecimento do crime organizado.
A taxa de ocupação nos presídios brasileiras é hoje, em média, de 176,7% – quase dois presos para cada vaga.
A matemática da cadeia mostra que quanto maior a superlotação, maior será o índice de violência atrás das grades. “Sem vagas, piora-se a higiene, não há ressocialização e, consequentemente, não se tira nada de positivo do presídio nessas condições”, diz o especialista em segurança pública Luiz Flávio Gomes, diretor do Instituto Avante Brasil.
“Os presos passam a integrar facções criminosas, e os presídios não ficam mais em poder do Estado.” As mortes ocorridas recentemente no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, são exemplos dessa situação. Em imagens gravadas em vídeo, os presos de uma facção criminosa denominada
O Bonde dos 40 exibiram, orgulhosos, cadáveres que decapitaram no presídio. As cenas, que detonaram uma crise de proporções internacionais, deveriam e poderiam ter sido evitadas.
Em 2009, um relatório da CPI do Sistema Carcerário da Câmara dos Deputados apontou a cadeia maranhense como uma das dez mais perigosas do país.
De acordo com especialistas ouvidos por ÉPOCA, em menos de uma década seria possível melhorar consideravelmente as condições nos presídios – e, por consequência, a segurança nas ruas do país.
De início, é necessário investimento em novos presídios. Também essencial é a aplicação de penas alternativas a presos não violentos. Isso pode aliviar a superlotação nas penitenciárias – caminho seguido por nações como Noruega, Suécia ou Portugal.
Outra medida são as parcerias público-privadas. “Não é privatizar. É deixar com a iniciativa privada a função de construir, equipar e colocar o pessoal de atendimento médico, nutrição”, diz o coronel José Vicente da Silva, secretário nacional de Segurança no governo Fernando Henrique Cardoso.
Faz sentido. Os disputados recursos públicos do Estado brasileiro precisam ser bem utilizados, para oferecer retorno positivo à sociedade. Se o setor privado contribuir com o aspecto físico do sistema prisional, o Estado terá mais condições de se concentrar na gestão das penas e das condições dos presos.
“Precisamos de menos prisões, menos encarceramento e uma política de drogas compatível com a realidade”, diz Luiz Eduardo Soares, também secretário nacional de Segurança Pública no governo Lula.
Esquecer o problema ou imaginar que suas únicas vítimas sejam os presos não levará o país a lugar algum. Se a epidemia de criminalidade do Brasil não for um dia vencida, de pouco servirão investimentos em saúde e educação. Uma sociedade em guerra consigo mesma não pode ser saudável.
Colaboraram Aline Imercio e Felipe Germano
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