◘ CINISMO, O REI ABSOLUTO.

Leandro Dias*, Pragmatismo Político
nomeação de Lula à Casa Civil pode se tornar um dos maiores erros políticos da história da democracia brasileira

Fazendo o exercício cínico de ignorar tanto que a nomeação se dava em circunstâncias polêmicas, em meio ao furor em volta do pedido de prisão do ex-presidente pelo MP-SP (aquele que citou Marx e Hegel e virou piada), considerado "precário" inclusive por membros da própria equipe de Sérgio Moro; como também, ignorando a polêmica sobre a prerrogativa de foro que os próprios grampos levantaram – estes, frisa-se, admitidos como ilegais pelo próprio Sérgio Moro -, podemos então afirmar que, independente de sua legalidade e do conteúdo dos grampos, do ponto de vista puramente republicano, a nomeação de Lula foi no mínimo leviana.

Se a Dilma já era considerada por muitos uma líder fraca, incapaz de correlacionar forças internas e discutir com os partidos da sua base parlamentar e estava longe de ser uma unanimidade mesmo dentro do PT, o que fica subjacente à sua decisão de chamar Lula para talvez mais importante ministério do governo é, de maneira inequívoca, uma demonstração monumental de fraqueza. 

É como se ela inegavelmente admitisse ser o que sempre falaram dela: uma líder pusilânime e vacilante, inapta para comandar o governo que supostamente dirige.

Mesmo que a nomeação de Lula ao ministério realmente fosse o que muitos governistas queriam e, por um bom tempo, muitos pmdbistas também, além de é claro, considerável parte da população, é difícil não entender essa nomeação como uma tentativa tardia de "Putinizar" o governo Dilma. 

Isto é, emular as ações – muito bem sucedidas, diga-se de passagem – do líder russo Vladmir Putin, que se alterna entre presidente e primeiro ministro da Rússia por pelo menos 16 anos, consolidando como líder inquestionável do país, tanto que muitos nem sabem que Dmitri Medvedev foi também presidente e primeiro ministro durante o "regime Putin".

Por isso que a oposição (seja a das ruas ou parlamentar) bradou que a nomeação de Lula fosse também uma espécie de golpe branco, mesmo não havendo absolutamente nada de ilegal ali. 

Porém, só um esforço ingênuo poderia negar que Lula estava assumindo o comando de fato do país naquela posse de Ministro. 

Curiosamente, Dilma fez, pela primeira vez em cinco anos, um discurso à altura de uma líder nacional: foi firme, não gaguejou ou cometeu as gafes usuais e foi contundente contra críticas. 

Falou bem, mas falou tarde demais. Ironicamente resolveu parecer uma liderança forte no momento que admitia que não governava mais.

A oposição por sua vez, reconheceu essa possível mudança de eixo de poder e sentiu que se realmente deixasse Lula "sossegado" no comando, ele rapidamente traria o PMDB para perto do governo de novo, prometendo o mundo ao partido, mesmo tendo que arranhar mais uma vez a já abalado compromisso com os trabalhadores. 

E ainda, como a delação doDelcídio Amaral indicou poucos fatos novos em relação a Lula, mas supostas bombas para caciques importantes da oposição como Eduardo Cunha e Aécio Neves, existia, portanto, a real possibilidade – hoje pequena – de a oposição ser enfraquecida se Lula conseguisse "governar" de fato.

É irônico e – novamente – extremamente cínico que Gilmar Mendes, o mesmo que foi veemente contra grampos no STF e no alto escalão do Estado na Operação Satyagraha, declarando as interceptações de telefone da operação como um "atentado contra o STF, o Judiciário e a democracia", indo inclusive interpelar com o próprio Lula sobre o caso em 2007, seja aquele que agora se baseia em conteúdo de um grampo ilegal para derrubar a posse do mesmo Lula e acirrar o discurso do Impeachment

O caso na época terminou com a condenação do Delegado Protógenes justamente por vazar à imprensa informações da operação e, o juiz Fausto de Sanctis – uma espécie de Sérgio Moro quase dez anos antes -, foi execrado pelo mesmo Mendes e condenado ao ostracismo

No entanto, vale mencionar em nosso festival de "dois pesos, duas medidas", o Delegado demitido foi parar justamente nas fileiras do governismo, se filiando ao PCdoB e o De Sanctis, se tornou um controverso herói da esquerda governista, com seus méritos ou não.

No fundo, parece que a oposição suspeitava que as denúncias (até agora) contra Lula eram muito fracas e que, se ficasse apenas em discussão de Triplex e "sitiozinho" (ironizado no grampo também ilegal do prefeito do Eduardo Paes), não iria conseguir muita coisa além de um constrangimento que parecia estar dando a Lula, fama de vítima e perseguido. 

Só assim para tentar entender porque se precipitariam no festival irremediável de ilegalidades jurídicas que se seguiu. 

Quando o próprio juiz Sérgio Moro admitiu não haver "indício nas conversas, ou fora delas, de que as pessoas citadas tentaram, de fato, agir de forma inapropriada", mas seus aliados na mídia e na oposição disseram exatamente o contrário, martelando diuturnamente o acontecido como um gigantesco escândalo, se torna difícil identificar quem é o cínico da vez: o juiz, a oposição, a emissora ou todos eles?!

Assim, tudo indica que a oposição constatou que Lula de fato poderia assumir o governo e lhe dar algum respiro, vislumbrando portanto, consequências negativas imediatas para ela, visto que até recentemente ela mesmo reconhecia a fragilidade do impeachment por pedaladas, e notou claramente que a condução coercitiva e a precipitação das denúncias a Lula pelo MP-SP eram até aquele momento um tiro no pé, que acabaram dando folego político a ele. 


Tudo isso pode explicar porque se precipitaram em destruir definitivamente o governo na avalanche de denúncias imediatamente amplificadas pelo seu largo aparato midiático, desmantelando assim a frágil base governista e, com base nas novas denúncias que os grampos (mesmo ilegais) e a nomeação de Lula deram, reforçar irremediavelmente o clima de impeachment.

Neste sentido cabe também um esforço enorme de cegueira para não considerar que as inúmeras ilegalidades da inconsequente iniciativa de Moro divulgada pela Rede Globo visavam principalmente insuflar não apenas as ruas, mas principalmente a base anti-Dilma no parlamento e dar enorme impulso ao pedido de impeachment das pedaladas e, portanto, têm de ser tomadas pelo que são: uma tentativa de alimentar um golpe branco judicial estilo o que ocorreu no Paraguai. 

Cabe uma desfaçatez gigante em pedir a derrubada de um presidente eleito por conta de manobras contábeis aprovadas pela própria comissão do Senado e, que criaria precedente jurídico para derrubar outros 16 governadores e o próprio vice-presidente!

Assim, a nomeação de Lula, precipitou seus rivais a jogar gasolina na pequena fogueira que vagarosamente crescia, transformando o fraco pedido de impeachment em um forte golpe judicial. 

Erguendo-se diante de nós um novo governo nas solidas bases do mais gritante cinismo. 

Um congresso temeroso com os caminhos que a própria Lava Jato pode tomar indica uma comissão de impeachment composta por uma maioria que recebeu dinheiro das próprias empresas da Lava Jato, sob a liderança de Eduardo Cunha, atolado em denúncias na Operação e do mesmo partido que domina vários ministérios e secretarias – base há 13 anos – do governo que quer derrubar, sendo o imediato beneficiado com o processo, erguendo seu vice ao cargo máximo da nação ao passo que negocia abertamente o futuro governo com os partidos da oposição derrotada nas urnas! 

Podem dar a interpretação legalista que for, somente ingênuos e cínicos não considerariam esse processo de impeachment encabeçado pelo PMDB como um golpe!

Por sua vez, o governo petista que agora clama pela legalidade e preceitos constitucionais que de fato se esfacelam, também nos deu por anos exemplos de que, entre os cínicos, também merece honrosa menção.

Observou de perto a intensa judicialização da censura que se avolumava no país, ao passo que enchia sua óbvia rival Rede Globo de dinheiro e se fazia de surdo aos clamores de democratização da mídia e fim dos veículos de comunicação nas mãos de políticos, exigência constitucional. 

Não apenas ficou quieto quando se avolumavam ações judiciais contra jornalistas independentes em todo país por parte da oposição, exemplo de Aécio Neves em Minas Gerais e José Serra em São Paulo, como também participou ativamente deste processo no emblemático caso de Cristian Góes (preso por um conto ficcional ao qual o governador petista do Sergipe Marcelo Déda e seu desembargador se sentiram ofendidos). 

Assumindo que, quando conveniente, também podia navegar na onda do super-judiciário.


Além disso, não apenas propôs e sancionou a recente Lei Anti-Terrorismo, como prendeu arbitrariamente dezenas de manifestantes contra a Copa do Mundo, num circo de autoritarismo festejado com o cínico "Vai ter Copa sim! E se reclamar muito, vão ter duas". 

Não o suficiente, chamou aos quatro ventos os jovens manifestantes de 2013 de "fascistas e golpistas", como faz agora contra seus antigos aliados do PMDB e, numa afronta a antigos aliados que pediam a reforma agrária, chamou a própria bancada ruralista para apoiar o seu governo! 

Poderíamos somar ainda o uso de largo aparato judicial e militar para tocar adiante a polêmica obra de Belo Monte, possivelmente também envolvida em subterfúgios corruptos e a "cegueira" com os desmandos autoritários do aliado Eduardo Paes nas obras dos Jogos da Exclusão, as Olimpíadas do Rio. 

Os casos seriam muitos, no entanto, a situação jurídica que agora se expõe é, de fato, ainda mais grave!

Quando um juíz grampeia o escritório inteiro de defesa dos advogados da própria operação que investiga, num dos crimes jurídicos mais graves que um juiz pode cometer, e ainda recebe o aval cínico ou vil de seus aliados, numa situação digna da Stasi na Alemanha Oriental, é um sinal de quebra da legalidade já está normalizada. Vale tudo. 

E além, quando juízes de primeira instância têm capacidade de embargar ou revogar decisões presidenciais, por mais que elas sejam estúpidas, é porque o problema da estrutura jurídica do país desmorona a olhos vistos: é o rabo abanando o cachorro! 

Imagina se os juízes de primeira instância começarem a questionar "na caneta" a política econômica, as relações internacionais, políticas públicas de qualquer decisão de um governo eleito, seja pela razão que for?! 

Lembremos que juízes não são eleitos, se fosse simples assim pautar e travar um governo que se discorda, seria mais fácil treinar concurseiros partidários do que gastar milhões em campanhas eleitorais para convencerem a votar nos candidatos! 

O precedente que está se criando é tenebroso no médio e longo prazo.

Se fazem isso com decisões presidenciais, o que farão quando a população eleger um prefeito ou vereador que não se alinha com o poder judiciário dominante local? 

O resultado é catastrófico para a democracia.

Por fim, iludem-se os que até hoje esperam uma "guinada a esquerda" do governo que nunca veio e nunca virá.

Mesmo que os movimentos sociais e base do governo, num esforço incrível de superação e luta, consigam o impossível e salvem no curto prazo o governo após a tremenda irresponsabilidade e leviandade cometida, qual será a normalidade a ser restabelecida em caso vitorioso? 

Um novo acordão com o PMDB? Trazer a oposição para formar um mega-governo de coalizão e tudo ficar na mesma?

Mas enganam-se também, num misto de ingenuidade e cinismo, aqueles que pensam que uma oposição coberta de interesses escusos, atolada em processos e investigações de corrupção, igualmente promíscua e envolvida nos esquemas de corrupção que derrubam o governo atual, vazia de qualquer projeto nacional, será capaz de estabilizar e executar seriamente as mudanças que o país precisa. 

O mesmo partido que esteve envolvido com todas as empreiteiras investigadas, encabeçado por Eduardo Cunha, Renan Calheiros e Michel Temer se alinhará com José Serra, o lobista de petroleiras estrangeiras, para formar um novo governo de coalizão "que vai mudar tudo"?! Santa ingenuidade!

O novo pacto social que se avizinha no curto prazo, independente de governo ou oposição vencerem, indubitavelmente colocará a imensa maioria da população para arcar com o ônus de um novo acerto entre a alta casta política e o compadrio empresarial. 

Portanto, o objetivo inicial de tomar as ruas pela legalidade, antes e depois de erguido o novo governo, não pode ser outro se não constranger e questionar por completo a cleptocracia patrimonialista formada pela promiscuidade entre o poder empresarial e casta política, seja ela "governista" ou "golpista". As Jornadas de Junho estão apenas começando.

*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico.
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