BBC Manuel Urrutia foi o 1º presidente de Cuba
após a revolução | Foto: Ecured
Ele foi o único
homem que esteve acima de Fidel Castro no governo de Cuba: o único que, em
teoria, poderia dar ordens ao "comandante".
Manuel Urrutia foi
não apenas o último governante de direita da ilha, mas também o primeiro
presidente de Cuba na revolução. Tudo ao mesmo tempo.
Urrutia, advogado
nascido no centro da ilha em 1908, sem simpatia partidária ou carreira
política, esteve envolvido em uma série de acontecimentos que o levaram a
assumir a liderança política de Cuba no dia 1º de Janeiro de 1959, pelo menos
por alguns meses.
Mas, quase seis
décadas após esses tempos turbulentos, sua figura permanece tão desconhecida no
exterior como no interior da ilha que governou.
BBC Fidel Castro liderou a luta contra Batista na
Sierra Maestra, enquanto outros grupos e partidos coordenaram ações nas cidades
Seus
desentendimentos com Fidel Castro e sua relutância em relação ao comunismo o
tornaram um personagem incômodo e, com o tempo, sua trajetória desapareceu das
versões principais da história oficial, como aconteceu com muitos outros que se
opuseram ao rumo tomado por Cuba na época.
"Ele foi o
primeiro opositor do governo ao comunismo e autor da primeira tentativa notável
de interromper aquilo", disse à BBC Mundo o escritor cubano e autor da
autobiografia de Fidel Castro, Norberto Fuentes, na qual dedica diversos
capítulos à passagem de Urrutia pela Presidência.
AFP O general Fulgencio Batista (à esq., vestindo
uma camisa xadrez) realizou um golpe em 10 de março de 1952 e impôs um governo
militar em Cuba
Segundo Fuentes, a
ascensão e queda de Urrutia nos primeiros meses de 1959 foi uma espécie de
metáfora das figuras com "vida limitada" que também foram
protagonistas dos inícios da revolução cubana e mais tarde esquecidas.
Mas quem foi
Urrutia e como ele se tornou uma figura-chave no início da revolução?
O primeiro passo
A entrada de
Urrutia na história de Cuba, que marcaria o resto de sua vida pública, pode ser
datada em 1957, ano do julgamento de um grupo de jovens que apoiaram o
desembarque de Castro e suas tropas.
"Urrutia era
juiz na Audiência de Santiago de Cuba, onde iriam julgar esses meninos que
haviam participado do levante", disse o historiador cubano Tomas Diez, do
Instituto de História de Cuba, à BBC Mundo.
"Mas, em um
ato de coragem, Urrutia disse que os jovens não poderiam ser condenados porque
o que eles tinham feito era amparado pela Constituição de 1940, que dizia que
as pessoas tinham o direito de se rebelar contra um governo ditatorial."
A atitude de
Urrutia abalou a opinião pública de Cuba, na época sob o governo linha-dura de
Fulgencio Batista.
"A ditadura
não aceitou essa decisão, começou uma perseguição política contra ele
(Urrutia) e o forçou a deixar o país", conta o historiador Sergio Guerra
Vilaboy, professor da Universidade de Havana.
Urrutia não teve
escolha senão fugir de Cuba, ainda que sua atitude em relação aos
seguidores de Castro fizesse com que este último voltasse a pensar nele pouco
tempo depois.
AFP
"Quando a luta na Sierra Maestra estava se consolidando, as
diferentes forças contra a ditadura começaram a pensar em quem poderia ser um
possível candidato para substituir Batista. Fidel Castro propôs (Urrutia)
devido à atitude que teve no julgamento e porque este não tinha compromisso com
nenhuma organização política", explica Guerra Vilaboy.
De acordo com o historiador, a proposta de Castro foi aceita
pela maioria dos partidos de oposição a Batista, com exceção do Diretório
Revolucionário, uma organização estudantil que atacou o Palácio Presidencial em
1957.
Diante do quase consenso, o magistrado exilado foi escolhido
para substituir Batista nas rédeas de Cuba.
Assim, em dezembro de 1958, ocorreu um dos eventos mais
peculiares na história presidencial da ilha: enquanto Batista governava em
Havana, Urrutia foi nomeado presidente da nova Cuba, no meio da selva da Sierra
Maestra e diante de Fidel Castro.
"Naquele momento, o almirante Wolfgang Larrazabal, que era
o presidente interino da Venezuela, enviou um avião com armas para a Sierra.
Nesse avião estava também Urrutia, e se constituiu ali um governo provisório.
Ele se encontrou com Fidel Castro e foi nomeado presidente", diz Guerra.
Após sua atípica nomeação presidencial, Urrutia passou os
últimos dias de dezembro refugiado em um lugar também incomum.
"Fidel o mandou para Vegas de Jibacoa, um lugar que ele
havia criado e era como uma espécie de Yenan (os campos de concentração para
intelectuais na China), onde estavam os intelectuais que apoiaram os rebeldes e
para onde se mudou a Rádio Rebelde (a emissora dos insurgentes criada por Che
Guevara)", explica Fuentes.
Mas sua estadia ali não durou muito: nas primeiras horas de 1º
de janeiro, Fulgencio Batista fugiu para as Bahamas em um avião com malas
cheias de dinheiro, segundo conta a historiografia oficial de Cuba.
Era a hora de Urrutia voltar de Sierra e assumir as suas
funções.
Urrutia
presidente
O primeiro governo da Cuba revolucionária começou a funcionar na
Universidad de Oriente, em Santiago.
Urrutia jurou formalmente e uma de suas primeiras medidas foi
nomear Fidel Castro como seu delegado nos institutos armados do país, bem como
Comandante das Forças do Mar, do Ar e da Terra da República.
BBC Urrutia era um advogado de classe média que
defendeu um grupo de jovens que apoiaram Fidel Castro em 1957 | Foto: domínio
público
O novo presidente
também nomeou como primeiro-ministro José Miró Cardona, um reconhecido
advogado, filho de um general das lutas de independência do século 19.
"Foi um
governo sem dúvida muito moderado, de direita", diz Guerra Vilaboy.
"Isso levou os
Estados Unidos a dar-lhe rapidamente o reconhecimento diplomático, já que o
presidente era um homem tão respeitável como Urrutia e o primeiro-ministro era
o presidente da associação de advogados, filho de José Miró Argenter. Ambos
representavam os grandes interesses do capital na ilha", explica.
Segundo o
professor, o governo de Urrutia dava a Washington a garantia de que a revolução
não se radicalizaria e oferecia à poderosa burguesia cubana certa tranquilidade
de que não perderia seus benefícios.
"Isso pode ter
sido uma tática de Fidel Castro, de (promover) um governo de consenso nacional,
que todas as forças políticas o aceitaram, e bem visto pelos Estados Unidos e
pela burguesia cubana, de modo que não houvesse atritos", diz Guerra
Vilaboy.
No entanto, Cardona
renunciou em pouco menos de um mês, e Fidel Castro assumiu o cargo de
primeiro-ministro.
AFP
Foi o começo do fim do governo de Urrutia ou, pelo menos, de
suas funções presidenciais.
"Quando Fidel Castro assume o posto, faz uma reforma na
Constituição de 1940. A partir desse momento, é o primeiro-ministro que tem o
poder para fazer as leis e, portanto, o governo recebe a tarefa de
executá-las", explica Guerra.
"Na prática, desde fevereiro de 1959, Urrutia desponta como
uma figura de segunda ordem", acrescenta.
Renúncia
e voo
"Em sua Presidência, o que Urrutia fez de melhor foi
aproveitar seu salário: 1.200 pesos. Era um advogado de direita, mas sem
qualquer experiência em cargos públicos e, no final, virou apenas mais uma
ficha no jogo político", opina Fuentes.
Após sua chegada ao governo, Fidel Castro começou a promover as
chamadas "leis revolucionárias": desde duas polêmicas reformas
agrárias até o confisco de propriedades de famílias poderosas.
"Urrutia, a princípio, apoiava essas leis, mas começou a se
distanciar quando considerou que elas estavam aproximando o país do comunismo.
Isso provocou uma crise do governo. Fidel Castro renunciou e isso obrigou
Urrutia, por sua vez, a renunciar também", explica Guerra.
O intelectual cubano Ambrosio Fornet lembra que Castro anunciou
sua demissão na televisão e depois, seus seguidores, convocaram uma mobilização
para exigir a renúncia de Urrutia.
"Foi um ato maciço e não havia dúvida de que Fidel era o
herói do momento e que Urrutia não tinha outra opção a não ser renunciar",
disse ele à BBC Mundo.
Segundo o historiador Tomas Diez, Urrutia "se deixou levar
pela propaganda" de ir contra a revolução comunista e a "traiu".
AFP Osvaldo Dorticós (centro) substituiu Urrutia
como presidente em fevereiro de 1959
"Ele foi uma
pessoa que deu declarações anticomunistas e jogou o jogo de não concordar com o
governo", diz ele.
No entanto, outros
veem em sua atitude uma expressão consistente com seus princípios.
"Eu acho que
foi um ato de coerência ideológica dizer que não estava de acordo com o que
estava acontecendo", argumenta Fornet.
Depois de renunciar
à Presidência, em julho de 1959, Urrutia se refugiou na embaixada venezuelana.
Ele foi substituído
por Osvaldo Dorticós, um líder comunista que anos depois acabaria se matando
com um tiro na cabeça.
Desde 1976, a
figura do presidente da República desapareceu da Constituição cubana e todo o
poder recaiu formalmente sobre Fidel Castro.
Um salvo conduto
permitiu que Urrutia deixasse Cuba e se refugiasse nos Estados Unidos, de onde,
sem apoio, tentou fazer oposição ao castrismo até sua morte, em 1981.
"No exílio,
ele teve sua maior transcendência. Ele não era um político, aqueles que o
conheciam sempre se referem a ele como um homem sem carisma. Ele realmente
chegou a um lugar que nem ele mesmo imaginava nem pretendia alcançar. Foi um
instrumento do momento histórico que lhe coube", conclui Guerra Vilaboy.
Envelhecido e
desgastado, seu nome se perdeu desde então no esquecimento da história.
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