A divresidade de formas das cabaças secando no girau - foto: Pedro Martinelli
A riqueza da fauna brasileira e a criatividade popular encontram neste fruto, com formas tão originais, uma de suas expressões mais fascinantes. Como objeto do cotidiano, suporte de várias artes ou cheio de fundamentos religiosos, pode nos surpreender e emocionar com seus multiplos usos e sentidos, seja no artesanato, na musica, na cozinha, na religião ou nos brinquedos.
O Celophane Cultural convida você a conhecer o enorme universo da “Cabaça”
Úteis em casa e no trabalho, mágicos nos rituais, próprios pra fazer música e arte, prontos pra brincar, estes frutos são também bons pra pensar. Bons pra pensar o Brasil, as relações dos homens com os meios em que vivem, com os mundos que veem e representam, e os encontros e desencontros destes homens.
É o que se pretendo mostrar aqui, textos e imagens relacionadas à presença das cabaças no cotidiano de donas de casa, trabalhadores, músicos, artesãos, religiosos e brincantes – que, remetendo a um universo muito mais amplo de práticas e tradições culturais, convida ao entendimento da pluralidade cultural dos grupos sociais que vivem em solo brasileiro.
Conhecidos desde tempos ancestrais pelos nomes de cabaça, cuia, porongo, coité ou cuité, os frutos de espécies vegetais distintas, mas assemelhadas nos sistemas de pensamento e classificação populares, têm recebido múltiplos usos e sentidos ao longo dos séculos nas cinco regiões brasileiras, perdendo-se na história referências à época e ao local de origem dos cabaceiros (Crescentia lagenaria), porongos (Lagenaria vulgaris) e das cuieiras (Crescentia cujete) no país.
No cenário cotidiano, como instrumento de trabalho e recipiente para líquidos e alimentos, na música, nos rituais, nas festas e brincadeiras, no artesanato tradicional e nas recriações de artesãos urbanos, entrecascas desses frutos multiformes constituem tanto objetos de uso corriqueiro quanto suportes de expressões que distinguem e identificam indivíduos e grupos da sociedade brasileira, num universo misto de referências culturais. Além disso, dão nomes a cidades, rios, praias, serras e lagoas de Norte a Sul, e estão amplamente presentes na tradição oral no Brasil.
A Influência Indigena
Os Indios tem uma grande influencia no uso da cabaça, como recipiente para água, cuia para servir ou guardar alimentos preparados, pequenas taças de uso ritual e na confecção de alguns instrumentos sonoros: a cabacinha com quatro furos; a buzina, na qual completa o gomo de taquara; no cinto de algodão, sob a forma de sininhos sem badalos que se chocam uns contra os outros, usado na cintura por corredores, amarrado abaixo do joelho ou socado contra o chão pelos cantores.
Bons pra comer, beber e trabalhar
O que é que o homem faz e Deus não fez? A cuia, Deus só fez a cabaça.
Em casas ribeirinhas, indígenas e quilombolas do Brasil, os frutos dos cabaceiros, das cuieiras e dos porongos costumam ser partidos em vários formatos, esvaziados do miolo, polidos e, quem sabe, até tingidos e decorados com incisões de exímia precisão, para servir como baldes, coiós, bacias, copos, tigelas; ou como cuias de tomar água, tacacá, chibé e mingau, no Norte, ou chimarrão e teréré, no Sul e no Centro-Oeste. Desses mesmos frutos que são transformados em objetos para comer e beber, também se fazem instrumentos de trabalho de pescadores, seringueiros e produtores de farinha de mandioca, que partem suas bandas de cuia para levá-las aos rios, às florestas e casas de forno.
No Nordeste, das mesmas cabaças que armazenam e transportam água pelo sertão, cortam-se cuias que são usadas nas feiras como unidade de medida para pesar, comprar e vender itens como farinha e tapioca, além de líquidos. Nelas também se guardam as sementes do replantio, a nata pra fazer manteiga, mel e até peças de roupa.
NO Sul e no Centro Oeste do Brasil, é o fruto do porongo objeto de cuidados especiais e a grande atração das rodas de chimarrão e de tereré. Na forma do numero oito, cortados na parte de cima, furados e polidos com cera, prontos pra receber a erva mate com água morna ou fria, deles se fazem cuias que passam de mão em mão, sempre à direita, como manda o antigo ritual de sociabilidade dos mateadores.
O fruto que cura:
Além dos usos das cuias e cabaças como recipientes, registram-se vários outros, de carater medicinal. Desses frutos tudo se aproveita: da casca, preparam-se extratos contra os males do fígado; do miolo, que também serve como ração para o gado, fazem-se xaropes, usados como purgativo, expectorante e antitérmico, ou cataplasmas indicadas contra dores de cabeça.
A música que sai da cabaça:
Eu vou ler o B-A-BA /
O B-A-BA do berimbau /
A cabaça e o caxixi /
E um pedaço de pau /
A moeda e o arame, colega velho /
Está aí um berimbau
(ladainha de capoeira, de Mestre Pastinha)
De vários tamanhos e formatos, as cabaças e cuias prestam-se sobremodo à confecção de instrumentos de percussão, corda e sopro, tradicionais e ‘inventados’, como os chamam alguns artesãos contemporâneos. Atabaques, cuícas, bongôs, maracás, chocalhos, xequerês, djembês, calimbas, rabecas, cavaquinhos, violas, harpas, flautas, apitos, além de marimbas e berimbaus, são algumas das possibilidades de criação exploradas em diferentes expressões musicais brasileiras a partir desses frutos, cuja sonoridade marca também celebrações religiosas e profanas.
Frutos bons pra brincar:
Ô minha gente venha ver como é que é/
Coisa bem original da cidade de Abaeté/
Temos a cuia que se manda preparar/
Cana que se faz cachaça pra na cuia se tomar
(Dança da cuia, Nina Abreu).
Embora sejam objetos de amplo uso e de grande serventia cotidiana, as cuias e cabaças também viram brinquedos em vários lugares e são festejadas em diferentes celebrações populares: na dança da cuia, em Abaetetuba, e nos festejos do Çairé, em Santarém, no Pará; no bumba-meu-boi e no reisado de caretas, no Maranhão; nos bonecos do artesão Laurentino Rosa dos Santos, do Paraná; nos mamulengos de Pernambuco e do Ceará.
Bate, bate na cumbuca /
Que o congo vem aí /
É congo de Angola /
Quem manda é Pai Joaquim
(ponto de chamada do preto velho Pai Joaquim)
A cabaça como objeto ritual
Consideradas por diversos grupos humanos como elementos dotados de poderes especiais, as cuias e cabaças estão presentes num vasto conjunto de práticas rituais e tradições religiosas, de matrizes indígenas e africanas em especial, amplamente difundidas no Brasil. Inteiras ou cortadas em partes, ocas, preenchidas ou envoltas em palhas e contas, lisas ou decoradas com incisões, todas têm seus donos na Terra e nos outros mundos, e constituem objetos prenhes de significados ritualísticos que só podem ser integralmente compartilhados por iniciados que conhecem ‘o fundo da cabaça’. Entre o povo de santo, assim como entre povos indigenas, aqueles frutos chocalham sons que afastam espíritos e influências negativas, quando balançados por determinados agentes rituais, conhecedores das palavras e cânticos apropriados. Nas religiões afro brasileiras, a cabaça é igba, na terminologia nagô, que representa o universo, o masculino e o feminino; o simbolo da união de Obatalá e Oduduwá, o Céu e a Terra; o invólucro mágico das folhas curativas de Ossain, presentes nos assentamentos desse orixá; um item poderoso do azé de Omulu; o recipiente sagrado dos panos da costa, também conhecidos como panos de cuia, das oferendas, como o padê (farofa) de Exu, e de beberagens devotadas a entidades que ligam a terra dos homens ao mundo dos deuses. Em rituais caseiros, as cuias pitingas são preparadas especialmente para os banhos de cheiro, à base de ervas escolhidas por suas virtudes benfazejas, pra “fechar o corpo” e “abrir os caminhos”.
Vinho velho em garrafa nova, vinho novo em garrafa velha.
Substituíssemos garrafa por cabaça, e teríamos uma perfeita metáfora para a profusão de objetos criados no Brasil a partir desses frutos, tanto em comunidades artesanais tradicionais quanto por artistas plásticos urbanos. Assinalando a circularidade de elementos culturais que, sendo encontrados preferencialmente nas camadas populares, acabam ganhando espaço junto a outros segmentos sociais, a expressão é sugestiva da mobilidade de velhas tradições em novos espaços, bem como das novas criações em suportes antigos, como os frutos em questão.
Cuias de Santarém – PA
Artesanato típico de Santarém e um dos ícones da identidade cultural do Pará, as cuias pintadas de Santarém passaram do anonimato a patrimônio cultural do Pará. Bonitas e coloridas, são feitas geralmente por mulheres. A participação dos homens acontece principalmente no processo de retirada do miolo do fruto.
Como toda cultura tem seu berço, o das cuias pintadas é a comunidade de Aritapera, situada às margens do rio Amazonas, em Santarém, Oeste do Pará. É na comunidade que, pelas mãos habilidosas de um grupo de mulheres, nascem peças do artesanato, nacionalmente conhecido como “cuias pintadas”.
Velha conhecida dos índios amazônicos que a utilizam para beber água, tomar banho no rio e até como prato, a cuia, fruto da cuieira (Crescentia cujete) ou Kuimbúka em Tupi, significa cabaça ou concha de tirar água do pote. É da casca desse fruto que há séculos índios e caboclos de Santarém fazem nascer o que hoje se conhece como artesanato das cuias pintadas. Atualmente, além da função utilitária, as cuias têm papel decorativo, tanto no Brasil quanto no exterior.
As cuias podem receber decorações gravadas, pintadas ou incisas, com formas que remetem às culturas indígenas presentes em toda a região amazônica. Hoje, por iniciativa dos próprios artesãos, o emprego das cuias também se estende a brinquedos, instrumentos musicais, máscaras, roupa de banho e acessórios, como bolsas, brincos, pulseiras. Nas barracas de venda de tacacá, elas se destacam, pois essa iguaria típica da culinária paraense é servida exclusivamente em cuias pintadas.
Tradições indígenas mantidas no processo de produção
Mas qual o processo de produção das cuias pintadas? Após a retirada da árvore, passa pela limpeza (retirado o miolo), secagem e eliminação das imperfeições (geralmente com lixa natural feita de escamas de pirarucu). Depois a cuia é tingida com o “cumatê”, tinta natural vermelho-escuro, extraída da casca da árvore conhecida como axuazeiro.
Em seguida as peças, já com a cor preta, são postas para secar sobre jiraus, onde ocorre a fixação da tinta. Nesta fase da produção entra a parte mais interessante, pois as cuias são tratadas com urina, o que permite uma aderência ainda maior da tinta nas peças. Só então as cuias ficam prontas para receber os desenhos pelas artesãs.
Engana-se quem imagina que as cuias são lavadas com urina. Um forro de palha impede qualquer contato direto das cuias com a urina, da qual apenas se extrai a amônia. Numa reação química já conhecida pelas índias há pelo menos quatro séculos, desde quando se tem notícia do fabrico artesanal das cuias pretas de Santarém. A amônia atua sobre a tintura do cumatê, enegrecendo-a por inteiro. Depois de bem lavadas e enxutas, as cuias perdem qualquer resíduo de odor de urina que possa ter ficado durante o processo e já estão prontas para serem pintadas ou para uso absolutamente higiênico.
Tacacá
Um tradicional prato da Culinária da região Amazônica está diretamente ligado á confecção das cuias é o Tacacá.
O tacacá, um prato à bace de mandioca brava (Manihot esculenta), consumido nas ruas de diversas cidades amazônicas é considerado tradicional e classificado pela população local como sendo “típico daqui”. Para numerosos paraenses (habitantes do Estado do Pará, cuja capital é Belém), o tacacá é preparado por especialistas (as tacacazeiras), consumido de preferência no cotidiano, em lugares e momentos bem específicos. Mais recentemente, foi incluído na lista dos produtos selecionados e inventariados pelo “Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional” (IPHAN). Reconhecido como sendo um “alimento típico”, participa do processo de construção de uma identidade paraense, e mesmo amazônica .
No trabalho intitulado “ Historia da alimentação no Brasil” (1967), Câmara Cascudoindica que o tacacáprovém do mani poi, que é constituído por uma mistura de tucupi,de beiju de mandioca esmigalhada e de suco de frutas, saboreado quente. A receita, escreve o folclorista, foi mencionada no século XVI pelo padre capuchinho Abbeville em sua descrição das práticas alimentares indígenas (Câmara Cascudo, 2004 : 135). A palavra tacacá provém certamente do nheengatu ou língua geral, o tupi veicular da Amazônia, falado em Belém até o fim do século XIX
«A língua adormece e o lábio treme levemente. É desta forma que a velha receita indígena manifesta a sua magia: entorpecendo o céu da boca. Faça a experiência de qualquer uma das especialidades culinárias famosas do Pará e você vai ver que a comida é comida de índio»
Bem foi bom viajar com voce neste fantástico universo das cabaças.
Fontes:
Catálogo da Exposição: “da cabaça o Brasil: natureza, cultura e diversidade” – Ministério da CUltura – Centro Nacional de Folclore e Cultura POpular – Museu do Folclore Edson Cordeiro – RJ e Museu de artes e Ofícios – BH – 2007: fotos da exposição
Em tempo: Após sete meses em que esteve fechada para reformas de seus espaços, a exposição de longa duração do Museu de Folclore Edison Carneiro reabriu à visitação nesta quarta-feira, 19. Situado na Rua do Catete, 181
Exposição “Cuias de Santarém” –www.defender.org.br
por Silvana Losekann – Local da Exposição em 2009: Centro Cultural João Fona (Museu de Santarém)
Povos Indigenas no Brasil – Site
Arte em cabaças transformadas em plena cidade grande: www.cabaca.com.br
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