O memorial às vítimas ao comunismo em Praga, na República Tcheca.
Uma placa dedica à obra "não apenas aos que foram mortos ou executados, mas a todos cujas vidas foram arruinadas pelo despotismo totalitário"
As cinco explicações para o fato de, na segunda década do século XXI, muitos ainda temerem o comunismo
Quando eu tinha sete anos, um tio costumava visitar a minha casa
com um alerta para o meu pai. "Zé, se este homem ganhar, duas, três
famílias vão dividir este apartamento com vocês".
O ano era 1989, o homem
era Luiz Inácio Lula da Silva.
Desde então, o muro de Berlim caiu, a Alemanha
se reunificou, a Tchecoslováquia se separou, a União Soviética se dissolveu em
15 Estados diferentes e os últimos países nomeadamente comunistas nem mais
conseguem sustentar sua ideologia, apesar de ostentarem o lado mais horrendo de
sua prática, o autoritarismo.
Não sei que fim levou aquele tio, mas o temor
saliente dos comunistas ainda persiste no Brasil.
O que explica isso? A resposta
para tal pergunta, no contexto brasileiro, está na interação de pelo menos
cinco fatores.
1 - O primeiro deles é o submundo da internet. Como todas as outras pessoas,
os teóricos da conspiração encontraram na rede um ambiente perfeito para
dialogar com seus pares.
Em fóruns e sites específicos, podem expor seus
pensamentos e "desenvolve-los" em contato com ideólogos de quinta
categoria e dublês de cientistas políticos.
Nas redes sociais e caixas de
comentários, duelam com seus opositores, os quais enfrentam com suas
"verdades", geralmente não corroboradas por provas.
A internet,
assim, funciona como incubadora e providencia as ferramentas para aglutinar os
teóricos da conspiração de diversas vertentes.
2 - O conteúdo da teoria do “golpe comunista” vem do mundo não virtual.
Até
hoje, o Brasil não fez um amplo reexame do que foi a ditadura, sua origem,
realidade e consequências.
A culpa por esta situação reside no Planalto –
Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva carregarão em suas
biografias o apoio tácito à política do esquecimento, que nunca enfrentaram.
Sob a administração Dilma Rousseff foram criadas as Comissões da Verdade, mas
elas enfrentam grandes obstáculos.
Nada é mais representativo da ânsia em
manter intocados os pecados da ditadura do que a Lei da Anistia.
Em 2010, o STF
referendou a lei sob o argumento de que a anistia foi fruto de um “acordo
político” entre governo e oposição.
Na realidade, o acordo previa anistia
apenas para os perseguidos políticos, não para agentes do Estado que cometeram
crimes de lesa humanidade.
Essa política do esquecimento manteve
intocadas diversas outras farsas daquele período, entre elas a de que João
Goulart planejava um golpe comunista.
Esta lenda, decisiva na aglutinação da
oposição a Jango, era considerada verdadeira pelos líderes do golpe, mas, como
escreveu o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, eles tinham uma “avaliação
imprecisa da extensão” dela e, mesmo assim, “se esforçaram para convencer o
público de que os bárbaros estavam à porta”.
Sem o amplo reexame da ditadura, o
que o Brasil experimentou foi a extensão desta mentira deslavada até os dias de
hoje.
A farsa sobre o complô comunista, assim, não é vista como o fato que é,
mas como uma “opinião”.
3 - A terceira questão na base do medo comunista é a resiliência da retórica
anti-petista.
Como outros partidos em diversos países no pós-guerra Guerra
Fria, o PT representa (ou representou?) a chegada de forças populares ao poder.
Símbolo da esquerda latino-americana, o Partido dos Trabalhadores ainda instiga
em alguns o medo de 1989, apesar de haver um enorme fosso entre as realizações
boas e ruins das administrações petistas e o comunismo.
Os lucros de
montadoras, bancos e empreiteiras nos últimos anos, além da nova classe
consumidora inserida ao sistema capitalista são apenas alguns dos exemplos
disso.
Por trás desta falsa conexão entre o PT
e o comunismo está uma visão de mundo reducionista, fruto de um raciocínio
primitivo, que atrela qualquer grupo ou ato da esquerda política ao
bolchevismo.
O messias dessa ideia é Olavo de Carvalho.
Em coluna publicada
no Valor Econômico em 31 de janeiro, Joel Pinheiro explicou de
forma didática a teoria olavista:
De acordo com Olavo de Carvalho, o
esquerdismo vai muito além da política. Toda a cultura está tomada pelo
marxismo cultural e a inversão de valores por ele efetuada.
O pensamento e os
slogans da esquerda são hegemônicos e constituem, assim como o PT, parte de um
processo para implantar o comunismo na América Latina via o Foro de São Paulo,
organização que reúne os principais partidos e movimentos de esquerda no
continente.
Neste contexto, a proximidade do PT com
outros governos sul-americanos de origem popular, como era o de Hugo Chávez na
Venezuela e é o de Evo Morales na Bolívia, é vista como “prova” da conspiração
comunista.
4 - O quarto fator a estimular o medo do comunismo é a incapacidade de determinados
setores da esquerda brasileira de se distanciarem desse tipo de regime.
Há uma
estranha simpatia a regimes comunistas, notadamente o de Cuba, talvez derivada
da impressão de que o princípio do comunismo, “no fundo, no fundo”, é
moralmente superior ao de outros sistemas.
Ainda que fosse este o caso, poucos
comportamentos são mais moralmente condenáveis do que defender regimes que
destruíram as vidas de milhões de pessoas, como foi o caso da União Soviética
de Joseph Stálin.
Conversar com alguém que viveu sob esse tipo de regime ou
simplesmente visitar um país de passado comunista mostra o tamanho da falta de
respeito, para dizer o mínimo, em que se consiste a prática de defender o
comunismo, mas lá no país dos outros.
5- O quinto fator é a grande imprensa brasileira, na qual vigora uma versão
“disfarçada” do olavismo (com as exceções de Paulo
Eduardo Martins e Rachel Sheherazade,apresentadores do SBT, que não
economizam na verborragia).
Apenas em 2014, muitos exemplos se acumularam.
Demétrio Magnoli afirmou que a reeleição de Dilma configuraria a formação de um
“regime” no Brasil; Arnaldo Jabor alertou sobre um “perigo vermelho”.
Não
faltaram referências, ainda, ao “bolivarianismo” e a uma suposta influência no
Brasil do governo de Cristina Kirchner, sobre a qual não se tem qualquer
indício real.
O item revelador do “alto olavismo” da imprensa é, entretanto, o
regime cubano. Seja a presença de Yoani Sanchez por aqui ou a inauguração do
Porto de Mariel, Cuba é capaz de transformar o Brasil numa réplica do condado
de Miami Dade, pedacinho da Flórida em que o anticastrismo é a identidade
coletiva e a Lei Helms-Burton (a que mantém o boicote a Cuba), a constituição.
Negociar com a Arábia Saudita, a China e ditaduras africanas é bom. E com Cuba?
Aí não pode. É um caso bizarro de moralismo seletivo.
Quando este tipo de comentário escapa
dos editoriais e páginas de opinião e atinge o noticiário a situação piora.
Não
é difícil identificar um golpe de Estado, mas a grande imprensa brasileira tem
pesos e medidas diferentes para fazer isso.
Em julho, todos os grandes veículos
usaram o termo golpe para identificar a derrubada do presidente do Egito.
Em
2009, em Honduras, e 2012, no Paraguai, quando caíram, respectivamente, Manuel
Zelaya e Fernando Lugo, o termo golpe foi suprimido deliberadamente.
Em comum
entre Zelaya e Lugo, o fato de serem ligados à esquerda política. Para grande
parte dos grandes veículos brasileiros, entretanto, aqueles movimentos não se
tratavam de golpes, exatamente como o que apoiaram em 1º de abril de 1964 e que
derrubou João Goulart.
Talvez outros fatores influenciem o
medo do "perigo vermelho", como as experiências pessoais de quem
sofre desta fobia.
O mais lamentável de tudo isso é o tempo e a energia gastos
numa discussão inócua.
É impossível que de uma discussão sobre um sistema
político-ideológico fracassado e superado surja algo minimamente útil para
resolver os inúmeros problemas do Brasil.
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