Governo
Bolsonaro: A aproximação entre presidente brasileiro e Israel pode afetar o
mercado bilionário de carne halal no Brasil?
Em fevereiro, uma ofensiva comercial de exportação
brasileira serviu milhares de omeletes e shawarmas de frango halal em Dubai.
Quatro meses antes, foi a vez do churrasquinho brasileiro em Paris - sempre de
carne halal, buscando atiçar o apetite de potenciais compradores em grandes
feiras de alimentos internacionais.
Ações semelhantes ao longo das décadas têm feito
parte da estratégia de expansão da venda de carne bovina e frango halal,
produzidas a partir de regras estabelecidas pela lei islâmica.
Os esforços do país,
que passam também por investimentos em frigoríficos seguindo esses preceitos,
surtiram efeito: o Brasil hoje é o maior exportador global de
proteína halal, cujo mercado consumidor reúne 1,8 bilhão de consumidores
muçulmanos.
Mas a visita do
presidente Jair Bolsonaro a Israel, a partir de domingo (31), dará sequência a
tratativas que podem afetar essas exportações: a promessa de mudar a embaixada
brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo os passos do
presidente americano Donald Trump.
A mudança tem potencial de provocar atritos com
palestinos e países árabes, rompendo com a postura de neutralidade mantida pelo
Brasil desde a fundação do Estado de Israel, há 70 anos. Fixar a embaixada em
Jerusalém implicaria o reconhecimento da cidade sagrada como capital
israelense, enquanto palestinos também pleiteiam soberania sobre a cidade que
desejam ter como sua capital.
Segundo o Itamaraty,
a promessa de campanha de Bolsonaro "permanece em estudo". "No
entendimento brasileiro, a perspectiva de melhorar as relações com Israel não
implica piora das relações com os outros parceiros do mundo árabe", afirma
o Ministério das Relações Exteriores à BBC News Brasil.
Apreensão no setor
A hipótese de mudança aventada por Bolsonaro durante
a campanha eleitoral de 2018 tem gerado apreensão entre entidades comerciais,
representantes da indústria e funcionários do setor, que temem um possível
embargo dos países árabes às exportações brasileiras se a mudança de embaixada
for concretizada.
O presidente da Câmara de Comércio Árabe Brasileira,
Rubens Hannun, afirma que o tema é sensível, e que países árabes têm
demonstrado preocupação em conversas, cartas e movimentações a nível
diplomático.
"É arriscar desnecessariamente, algo que poderá colocar em risco um
mercado que demorou muito para ser estabelecido", considera Hannun.
"Nosso medo é que essa relação (entre o Brasil e os países árabes) possa
enfraquecer. Não haveria uma quebra imediata, mas a médio e longo prazo
veríamos uma perda de potencial, um retrocesso."
De acordo com a Câmara de Comércio Árabe Brasileira, as exportações de
carnes de frango e halal para países árabes aumentaram 418% nos últimos 15 anos
- pulando de US$ 706 milhões em 2003 para US$ 3,65 bilhões em 2017.
Hoje, o Brasil é de longe o principal fornecedor de proteína animal
halal para o mundo árabe, tendo suprido 51,9% dessa demanda em 2017, segundo
dados do Centro de Comércio Internacional (ITC) - ou seja, mais de metade do
consumo.
Os países árabes e o Irã compraram mais de um terço (36,3%) da proteína
halal exportada pelo Brasil em 2017, e respondem por cerca de 10% das
exportações do setor agropecuário do Brasil, e por quase 6% de todas as
exportações brasileiras, segundo dados do Ministério da Economia.
Um embargo árabe às exportações nacionais "amplia o grau de
incerteza para que as empresas brasileiras realizem investimentos no território
nacional voltados à expansão da produção de produtos halal, pois os novos
investimentos podem se tornar gastos sem uso", afirma a Câmara Árabe
Brasileira.
Para uma fonte
diplomática árabe ouvida pela BBC News Brasil, a mudança teria implicações
negativas para a estabilidade na região e para as negociações do processo de
paz no Oriente Médio, e geraria prejuízos à relação com países árabes sem uma
real contrapartida na relação com Israel.
"Não há qualquer razão para fazer isso a não
ser envergonhar os parceiros árabes em suas relações históricas com um país
amistoso como o Brasil. A questão não é quem vai ganhar em relação a importações
ou exportações. A questão real é por que abrir mão de uma oportunidade genuína
de continuar a expandir parcerias em todas as áreas com os 22 países árabes, e
com os 57 Estados-membros da OIC (Organização para a Cooperação Islâmica), em
vez de um (Israel)", afirma essa fonte, em conversa com a reportagem.
Abate halal
A denominação halal designa "lícito" e
representa aquilo que está em conformidade com as regras estabelecidas pela lei
islâmica (a sharia). As regras são aplicadas a alimentação, remédios, lazer e
vestuário. Produtos halal não podem ter vestígios de itens proibidos aos
muçulmanos, como álcool, carne de porco e seus derivados.
Para que a proteína seja considerada halal, o animal
tem que ser abatido seguindo uma série de especificações. A degola precisa ser
feita com um facão afiado, com corte em forma de meia lua. O degolador tem que
ser necessariamente muçulmano. De um só golpe, deve cortar as jugulares, veias
e traqueia do animal, imediatamente após recitar a frase "Bissmillah
Allahu Akbar" - "Em nome de Deus, Deus é maior!"
"Não basta
falar a frase. O abatedor precisa ter no coração o sentimento de que está
fazendo o abate halal para alimentar uma pessoa, e não está matando para fazer
o animal sofrer ou por maldade", descreve Kaled Zoghbi, coordenador halal
da produção de aves da Federação das Associações Muçulmanas no Brasil
(Fambras), a principal certificadora de produtos halal no país.
O golpe precisa ser rápido e certeiro, descreve,
cortando as veias jugulares de uma vez, causando a morte instantânea e buscando
eliminar a possibilidade de liberação de toxinas que contaminem a carne. O
escoamento posterior do sangue tem que ser completo.
A produção seguindo os preceitos halal começou a ser
implementada no Brasil a partir de 1979, com a fundação da Fambras pelo libanês
Hajj Hussein Mohamed El Zoghbi. Hoje, a entidade tem mais de mil degoladores
espalhados pelo Brasil. Seu filho e atual presidente da Fambras, Mohammed El
Zoghbi, leva o trabalho adiante.
El Zoghbi considera cedo para estimar o impacto que
a mudança de política externa do Brasil em Israel teria para esse mercado.
"Nós levamos 40 anos para formatar esse
mercado. As pessoas têm que enxergar isso. É um trabalho árduo, sério, que visa
ao crescimento do mercado brasileiro e sempre buscou desenvolver a
credibilidade do Brasil no exterior. A população islâmica consome o produto
brasileiro confiando no que a gente faz", afirma.
Açaí, pão de queijo
e detergente
Presidente da Câmara de Comércio Árabe Brasileira,
Rubens Hannun destaca que as exportações do Brasil para países árabes cresceram
sete vezes nos últimos 20 anos.
Em 2018, quase 50% das exportações de frango
brasileiras foram do produto halal - tanto para países árabes quanto para não
árabes, somando 1,966 milhão de toneladas, segundo a Associação Brasileira de
Proteína Animal (ABPA).
Já no mercado de
carne bovina, que bateu recorde de exportações em 2018, o corte halal para
consumidores árabes respondeu por 20,8% do total vendido no mundo, somando 341
mil quilos exportados, segundo a Associação Brasileira das Indústrias
Exportadoras de Carnes (Abiec).
Questionada sobre eventuais impactos da mudança da
postura brasileira em Israel, a ABPA afirma que o setor "prefere não
especular sobre os riscos efetivos destas tratativas", dado que não foram
tomadas decisões até o momento.
A associação destaca, entretanto, a "grande
importância" que as exportações de carne de frango halal têm para o
Brasil, tanto na geração de empregos como de divisas para o país - atendendo a
mercados expressivos como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait,
Iraque e Egito.
Embora a proteína animal seja o principal produto
halal do Brasil, o leque de produtos que podem ser qualificados como halal é
enorme - e outras indústrias brasileiras têm se beneficiado por essa expansão
de olho no mercado muçulmano, ressalta Dib Tarras, diretor de certificação
halal do setor industrial da Federação das Associações Muçulmanas no Brasil
(Fambras).
A federação já concedeu certificação halal a mais de
170 indústrias brasileiras, afirma Tarras - incluindo produtos químicos,
farmacêuticos, cosméticos, chocolate, laticínios... O Brasil exporta até leite
condensado, açaí e pão de queijo halal.
Os países árabes representam 20% dos consumidores
muçulmanos do mundo. "O Brasil ainda tem um mercado gigantesco a
explorar", afirma.
Substituição difícil
Em entrevista à BBC News Brasil em janeiro deste
ano, o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José
Augusto de Castro, afirmou que as exportações de frango seriam as mais afetadas
seguidas pelas de carne e de açúcar.
Mesmo assim, Castro avalia que dificilmente os
países árabes conseguiriam, no curto prazo, substituir amplamente as
importações brasileiras, já que há poucos países capazes de exportar na mesma
quantidade e custo que o Brasil. Além disso, as alternativas existentes para as
nações islâmicas também esbarram em conflitos geopolíticos.
Se quisesse substituir a carne brasileira, o mundo
árabe precisaria recorrer aos segundo e terceiro maiores exportadores: Estados
Unidos e Austrália.
A questão é que os Estados Unidos, sob o governo Trump,
foram os primeiros a transferirem a embaixada para Jerusalém. E, em dezembro, a
Austrália reconheceu oficialmente Jerusalém como capital de Israel, embora não
tenha transferido sua embaixada para lá.
No caso do frango, Castro afirma que a União Europeia
poderia, a médio prazo, tentar ocupar o vácuo deixado pelo Brasil. Ainda assim,
seria custoso para os países árabes, já que o frango brasileiro é mais barato.
Quanto ao açúcar, produtores temem perdas a médio e
longo prazo, mas também não acreditam que seja possível uma substituição
completa do produto brasileiro.
"Não vejo, no curto prazo, um substituto
imediato para o açúcar brasileiro. De uma forma estrutural, o Brasil responde
por 50% do comércio mundial de açúcar", ressalta Paulo Roberto de Souza,
coordenador de competividade internacional da maior associação de usineiros do
Brasil, a União da Indústria da Cana de Açucar (Unica).
Ele afirma, porém, que a médio prazo, Tailândia,
Índia e União Europeia podem se movimentar para substituir parte do que hoje é
exportado pelo Brasil aos países árabes.
'Não vão colocar
nossos empregos em risco'
Para se habilitar a produzir proteína halal,
frigoríficos precisam implementar uma série de mudanças. As exigências incluem
espaços completamente separados para fazer o abate halal e linhas de produção
em velocidades diferentes para a degola manual do frango, geralmente feita com
disco de corte no abate não halal.
Os degoladores são necessariamente muçulmanos, o que abriu um mercado
para trabalhadores islâmicos no país - e acabou gerando empregos para
refugiados.
É o caso do ganês Tijani Jafaru, que chegou ao Brasil fugindo de ameaças
em seu país e acabou conseguindo emprego em um frigorífico em Santa Catarina,
100% voltado para exportação. Ele é um dos 33 muçulmanos que trabalham fazendo
o abate halal de frangos em uma unidade na cidade de Seara, onde a marca
homônima foi fundada.
"O Brasil é uma mãe que ajuda quando o filho está chorando",
compara Tijani, 33 anos, que foi vítima de um golpe em Gana. Pediu empréstimo
de um banco para comprar um terreno, recebeu documentação falsa e acabou
ficando sem teto, com uma dívida bancária e perseguido pelos mafiosos por trás
do esquema.
Ele diz que os colegas de trabalho são "igual a família" e é
grato pelo trabalho - que lhe traz sustento e lhe permite enviar dinheiro para
casa para pagar gradualmente sua dívida e ajudar os dois filhos, que sonha em
trazer para cá.
No frigorífico, conversas sobre as possíveis mudanças de rumo na
política externa brasileira em Israel ganharam espaço entre as linhas de
produção, despertando temor entre Tijani e os demais funcionários.
"Todos nós que trabalhamos nesses frigoríficos temos medo",
diz o egípcio Moustafa Mitwalli, supervisor da unidade, que chegou do Egito há
oito anos. Só lá são 700 funcionários, pondera - levando sustento para cerca de
700 famílias.
"Se a mudança (da embaixada em Israel) acontecer em favor do
governo israelense, e problemas com os países árabes começarem, o risco não é
só para a gente, é para todos que trabalham nesses frigoríficos, os brasileiros
também", considera Mitwalli.
"Acredito que não vão fazer isso. Não vão colocar a economia do
Brasil e os nossos empregos em risco."