Governo pagou irregularmente R$ 19,5 milhões do Bolsa Pesca, aponta auditoria do TCU
Foram repasses a funcionários públicos, a quem tinha outras fontes de renda e até a mortos entre 2012 e 2013
RIO - Em um ano e meio, o governo federal fez pagamentos irregulares de
mais de R$ 19 milhões através do seguro-defeso, o chamado Bolsa Pesca. Foram
pagamentos, por exemplo, a funcionários públicos, a quem tinha outras fontes de
renda além da pesca, e até a mortos. Resultado de uma auditoria do Tribunal de
Contas da União (TCU) analisada pelo plenário do tribunal no último dia 8 de
abril, o dado é relativo a parcelas do seguro-defeso pagas entre janeiro de
2012 e junho de 2013.
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Do total de 30,2 mil parcelas que representaram R$ 19.586.768 repassados
irregularmente, 19 mil parcelas, o equivalente a R$ 12,4 milhões, foram para
quem tinha registro de emprego formal - o que não é permitido aos beneficiários
do seguro, que deve ser pago a pescadores artesanais durante o período do
defeso, em que a pesca de determinadas espécies é proibida.
Cerca de um terço das pessoas que, mesmo no mercado formal de trabalho,
eram beneficiários do seguro-defeso recebia remuneração da administração
pública, a maioria de prefeituras, segundo o TCU. Além disso, 373 parcelas
foram pagas a mortos. Outras 7,5 mil parcelas foram para quem recebia
benefícios previdenciários que não podem ser acumulados com o Bolsa Pesca; e
outras 318 parcelas, a quem recebia remuneração da administração federal.
Outra fraude descoberta foi a existência de 46,8 mil registros de
pescadores com CPF irregular - com a possibilidade até de criação de CPFs para
obtenção do Bolsa Pesca. E há também casos de parcelas do seguro pagas fora do
período do defeso; de ausência de registros sobre embarcações utilizadas pelos
beneficiários; e parcelas pagas a menores de 18 anos, outra proibição da
legislação sobre o seguro.
A auditoria do TCU foi iniciada em julho de 2013 — pouco mais de um mês
após O GLOBO ter revelado denúncias de cooptação da Confederação Nacional de
Pescadores e Aquicultores (CNPA) e das superintendências estaduais do
Ministério da Pesca pelo PRB, partido do então ministro da Pesca, Marcelo
Crivella. Reportagens do GLOBO também já haviam mostrado casos de fraudes tanto
no registro de pescador (concedido pelo Ministério da Pesca e requisito para
recebimento do Bolsa Pesca) quanto no pagamento do benefício (feito pelo
Ministério do Trabalho), com pagamentos a quem não era pescador em vários
estados brasileiros.
COMPARAÇÃO COM DADOS DA RECEITA E DO INSS
Os auditores do tribunal verificaram os controles internos do Ministério
do Trabalho no repasse do benefício, ''incluindo as bases de dados e os
batimentos realizados para a sua concessão'', diz o texto votado no último dia
8. Além de informações da pasta do Trabalho, o acórdão, relatado pelo ministro
Augusto Sherman, analisou dados do Ministério da Pesca, do INSS, da Dataprev
(Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social) e da Receita
Federal. O TCU cruzou os registros de pescadores e a lista de beneficiários do
Bolsa Pesca com cadastros como o CPF (Cadastro Nacional de Pessoa Física), a
Rais (Relação Anual de Informações Sociais, o Caged (Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados), o Sisobi (Sistema Informatizado de Controle de
Óbitos) e o Siape (Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos).
No caso dos cruzamentos feitos, por exemplo, para se verificar se havia
pessoas acumulando o recebimento do Bolsa Pesca com empregos formais, ''34,4%
do total (dos vínculos detectados na Rais de beneficiários do seguro-defeso)
são pertencentes à administração pública. Destes cargos e empregos, 81,9% referem-se
ao Poder Executivo municipal. Portanto, no cruzamento realizado destacou-se a
participação das prefeituras como grandes empregadoras de beneficiários do SDPA
(seguro-defeso)'', afirma o texto votado pelo plenário do TCU.
O tribunal alerta que não foram considerados os empregos informais. Se
os registros do benefício pudessem ser comparados com quem tem renda a partir
de trabalho informal, o volume de irregularidades detectadas poderia ser bem
maior: ''há indícios de que vários beneficiários exercem outra atividade
diversa da pesca, porém não estão no mercado formal, logo, não constam nas
bases de dados governamentais''.
Já em relação aos casos de pagamentos irregulares a servidores federais
e a mortos, o tribunal aponta que a causa é o fato de simplesmente não ser
feito cruzamento dos registros do benefício nem com o Siape, sistema com
informações sobre servidores públicos; nem com o Sisobi, sistema de controle de
óbitos. Também foram constatados ''9.005 requerimentos (do seguro-defeso) com
data de entrada anterior a 30 dias ou posterior 180 dias do início do defeso; e
44.041 requerimentos que foram cadastrados depois de 40 dias do término do
defeso''.
Os auditores do TCU descobriram, ainda, que o sistema do seguro-defeso
de cadastramento de informações não permite que sejam incluídos dados das
embarcações dos pescadores beneficiários, ''pois esse módulo não foi
implementado pela Dataprev'', apesar de essa ser uma informação pedida no
requerimento do seguro. O sistema de cadastramento do Bolsa Pesca também não
inclui registro do local de arquivamento do processo físico do benefício -- o
que leva, diz o TCU, a ''dificuldade ou impossibilidade de resgatar em momento
futuro a documentação apresentada''.
INDÍCIOS DE FRAUDES COM CPFs
Quando foi feita a comparação dos dados do seguro-defeso e do registro
de pescador com o CPF, ''constataram-se 14.151 requerimentos da base SDPA
(seguro-defeso), 46.837 registros gerais da atividade pesqueira (RGP) e 1.646
cadastros de proprietários de embarcação com CPFs em situação não regular na
base da Receita''.
Além disso, apenas nos registros de pescadores, foram achados 7.992
registros com o nome da mãe em branco; 6.227 registros sem a data de nascimento
do pescador, e 870 registros com o número de identificação do pescador
duplicados. Entre aqueles com registro de pescador que possuem CPF irregular, o
TCU ressalta haver ''quantidade expressiva de registros com nomes diferentes
entre a base do RGP e da RFB (Receita Federal), sugerindo que pessoas diversas
utilizam o mesmo CPF. Isso seria um indício de fraude, em que o indivíduo se
utiliza de CPF alheio para retirar o RGP (registro de pescador) e, em seguida,
solicitar o benefício do seguro''. Segundo o tribunal, mais do que o uso
indevido do CPF, há a possibilidade até de ''criação de CPFs para o recebimento
indevido do benefício''.
Nos estados que mais pagam o Bolsa Pesca -- Pará, Maranhão, Bahia e
Amazonas --, o tribunal aponta um quadro de falta de fiscalizações. Além disso,
o TCU sublinha que, nas reuniões realizadas pelos auditores com a Pesca, o
Trabalho e outros órgãos públicos, ''foi citado um esforço conjunto (...) para
tratar do significativo aumento do SDPA (o seguro-defeso) nos últimos anos.
Criou-se no final de 2011 um grupo interministerial envolvendo MTE (Trabalho),
MPA (Pesca), MMA (Meio Ambiente), MPS (Previdência) e CGU (Controladoria-Geral
da União). (...) Entretanto, segundo relatos obtidos por esta equipe de
auditoria, o trabalho não teve continuidade''.
Além de fazer determinações aos ministérios do Trabalho e da Pesca, o
tribunal encaminhou os resultados da auditoria ao Ministério Público Federal e
aos Ministérios Públicos estaduais do Pará, do Maranhão, da Bahia e do
Amazonas.
MINISTÉRIO DO TRABALHO VAI ANALISAR CADA CASO
Procurado pelo GLOBO, o Ministério do Trabalhou afirmou, por meio da
assessoria de imprensa, que os indícios de fraudes ''decorrem, em alguns
aspectos, de fatores externos ao sistema do seguro, que se utiliza de
cruzamento de dados com outras bases de governos''. Segundo a pasta, um desses
''fatores externos'' seria o fato de que ''no momento do cruzamento a
informação não se encontrava na base de dados pesquisada''. Outro motivo, diz o
ministério, seria que ''o cruzamento pelo TCU trouxe novas bases de dados, das
quais o MTE não dispõe, caso de base do TSE de candidatos a eleições''. Além
disso, a pasta afirmou que houve ''problemas detectados nas próprias bases
pesquisadas; por exemplo, informação inverídica de pessoas mortas''.
''Todas as situações apontadas refletem indícios de pagamentos indevidos
e exigem análise individual de cada um dos casos apontados'', sublinhou o
Ministério do Trabalho, destacando, ainda, a adoção de abertura de processos
administrativos quando detectada a irregularidade. ''Cabe destacar que o volume
detectado de indícios de pagamentos indevidos representa 0,005% do montante
destinado ao benefício anualmente e que o MTE vem aprimorando seu sistema de
batimento de dados para evitar que esses indícios ocorram'', completou a
assessoria.
O Ministério da Pesca, também questionado, ressaltou que este ano foram
modificadas as regras para concessão do registro de pescador, requisito para
obtenção do seguro-defeso. Segundo a assessoria de imprensa da pasta, por meio
do decreto 8.425, de 31 de março deste ano, passou a ser feita uma
classificação dos pescadores no momento em que eles são registrados: se são
pescadores apenas eventuais, encaixando-se numa categoria subsidiária; se são
pescadores ''principais'', ou seja, se têm a pesca como principal fonte de
renda, mas também possuem outras fontes; ou se são pescadores exclusivos, que
vivem apenas da pesca. De acordo com a assessoria, apenas aqueles com registro
de pescador exclusivo podem requerer o seguro-defeso a partir de agora. No caso
de pescadores que já possuem o registro, quando eles forem fazer a atualização
cadastral (no dia do aniversário do pescador), serão classificados de acordo
com as novas categorias, afirmou a assessoria.
O registro de pescador continuará a ser autodeclaratório, isto é,
baseado na declaração da pessoa de que ela pesca, com a exigência apenas de
duas testemunhas, normalmente uma delas sendo o presidente da colônia, do
sindicato ou da federação de pesca de que o pescador faz parte. No entanto,
segundo o ministério, haverá uma mudança nesse controle da concessão do
registro a partir da publicação, em meados de maio, da regulamentação do
decreto 8.425. Segundo a assessoria da pasta, essa regulamentação vai
determinar que, no caso de fraude -- ou seja, no caso de pessoas que se
declarem pescadores sem ser --, a responsabilidade civil e criminal pela fraude
passará a ser não apenas do pescador, mas também das duas testemunhas do caso.
Ainda segundo a assessoria da Pesca, foi retomada a substituição das
carteiras de pescador por carteiras com tecnologia QRCode, para evitar
falsificações; essa substituição havia sido iniciada na gestão anterior, mas
atingindo percentual muito baixo de pescadores.
Ao GLOBO, o senador Marcelo Crivella afirmou que, durante sua gestão
como ministro da Pesca, a pasta fez economia equivalente a R$ 1 bilhão no
seguro-defeso ao suspender cerca de 405,8 mil registros de pescadores e
cancelar outros 311,8 mil registros. Crivella destacou também que, como
ministro, publicou normas e determinou medidas de controle contra fraudes no
registro de pesca, como a realização de um recadastramento dos pescadores no
país.
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