Meios usados para garantir a governabilidade corromperam os fins das gestões do petismo
O PT acreditou que, para governar e manter o poder, poderia e bastaria corromper parte das elites políticas e econômicas do País.
Mas os meios corromperam os fins e o próprio partido conspurcou-se
Leitores com frequência mantém contatos e conversas com repórteres do Jornal Opção e fazem questionamentos pertinentes, inteligentes e curiosos. A maioria está preocupada e, ao mesmo tempo, estarrecida com o que chama de “onda de corrupção” no governo da presidente Dilma Rousseff. Muitos dizem que o PT “cresceu” combatendo irregularidades e, ao chegar ao poder, “lambuzou-se”. Há os que perguntam: “Como começou todo este processo corrupto?” Fala-se que o PT inventou a uma máquina de ilegalidades que, na falta de uma palavra apropriada, pode ser chamada de Corruptobrás ou, como querem determinados leitores, Petebrás.
As perguntas dos leitores — professores, médicos, engenheiros, advogados, historiadores, bancários — são relevantes e merecem discussão, mas talvez não seja possível apresentar, ao menos no momento, uma explicação precisa e um quadro nuançado que vão além das polêmicas ideológicas e partidárias. Há a tendência de avaliar que, quando um caso chega ao Poder Judiciário, o País assiste um processo de cozimento e ajuste que, num palavra, é denominado de “pizza”. Porém, não é bem assim. No calor das crises, as denúncias são apresentadas com fervor, mas não as defesas dos acusados. No Judiciário, instância fundamental de um regime democrático, é que as dúvidas devem ser dirimidas, com a checagem independente — com o clamor das ruas e da mídia pressionando menos — das versões e documentos. Aquilo que parece consensual, verdade irrespondível, às vezes tem fissuras e a Justiça não é o espaço apropriado para “linchamentos” da reputação dos indivíduos.
Antes de apresentar algumas explicações — ou uma explicação das quais as outras derivam — sobre a origem da corrupção do governo do PT, sugerimos ao leitor mais paciente e consciencioso que leia dois livros que podem ajudá-lo a compreender tanto a história do Brasil quanto os brasileiros.
“Raízes do Brasil” (Companhia das Letras, 224 páginas), particularmente o capítulo “O Homem Cordial” (que a editora publicou à parte, tal sua importância), do historiador Sérgio Buarque de Holanda, mostra de que “material” foram “plasmados” os brasileiros e porque se comportam de uma forma, e não de outra. A aversão à ação institucional, para além do “jeitinho”, não é típica apenas dos políticos. É praticamente uma norma não escrita e que “viabiliza” as relações “conciliatórias” e “sutis” entres os brasileiros.
Compare-se a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula da Silva. A petista é mais, por assim dizer, “institucional” e, por isso, e não por ser “chata” e “mal humorada”, mantém certo distanciamento de alguns políticos pouco “institucionais”. Aí as relações de Dilma Rousseff com os políticos “não funcionarem” e deriva disto o fato de Lula da Silva ser convocado para “segurar” as velhas e “firmar” as novas alianças. O “jeitinho” do petista-chefe “funciona” — nem é preciso dizer muito mais — e a ação institucional “não funciona”. Deveria ser diferente, mas não é.
O segundo livro é “Os Donos do Poder — Formação do Patronato Político Brasileiro” (Biblioteca Azul, 944 páginas), de Raymundo Faoro. Se quiser entender a longevidade de políticos como José Sarney e Iris Rezende, mesmo que eles não sejam citados no livro, o leitor deve ler este livro.
À sua maneira enviesada, com uma teorização rica e complexa, mas que pode ser compreendida por meio de uma leitura atenta, o jurista, historiador (até filósofo da história) e crítico literário (escreveu um livro seminal sobre o escritor Machado de Assis) Raymundo Faoro mostra, detalhadamente, como as elites políticas e econômicas nunca saem do poder. Pelo contrário, as mudanças são mudanças mais na aparência do que na essência.
Os que estavam no poder parecem “cair”, com os novos tempos, mas pouco a pouco assenhoram-se dos ventos renovadores, compõem com o novo “sistema” e, de repente, estão “dentro”. Nada mais arcaico do que um moderno no poder e nada mais moderno do que um arcaico fora do poder, mas, no fundo, é tudo, digamos, uma questão cosmética, não de fundo. Faces de uma mesma moeda.
Note-se o caso de Iris Rezende e José Sarney, mais este do que aquele, que, insistimos, não são examinados pelo livro mencionado.
José Sarney surgiu como de esquerda, confrontando um coronel do Maranhão, e, em seguida, apoiou a ditadura civil-militar de 1964 e se tornou um de seus beneficiários.
Porém, entre 1984 e 1985, quando o País se preparava para “enterrar” a ditadura, eis que surge um novo José Sarney, ex-PSD e agora migrando para o PMDB, como vice de Tancredo Neves. A ditadura fenecera, mas o político do Maranhão “renovara-se”, aderindo ao (e liderando o) processo mudancista, ao renegar o passado imediato. Com a morte de Tancredo Neves, José Sarney assumiu a Presidência da República, criando, quem sabe, um sexto governo do regime militar, só que civil.
Adiante, quando a socialdemocracia assumiu o controle do governo federal, primeiro com o PSDB de Fernando Henrique Cardoso e, na sequência, com o PT de Lula da Silva e Dilma Rousseff, José Sarney “ressurgiu”, forte como nunca, não como um mero sobrevivente, e sim como um político sólido, apontado como aglutinador, chegando a presidente do Senado. José Sarney e Lula da Silva criaram uma aliança poderosa que, durante anos, garantiu parte da governabilidade. Talvez possa se dizer que Lula sarneyzou-se e que José Sarney lulalizou-se. Um pacto faustiano, diria Goethe.
Iris Rezende merece um comentário mais breve, até porque não tem a projeção nacional de José Sarney. Na década de 1980, quando chegou ao governo de Goiás, o peemedebista-chefe foi duramente atacado pelo PT e considerava o partido de Lula como o suprassumo do radicalismo político. Os enfrentamentos eram sérios e o PT o avaliava como uma espécie de coronel político. Em certo momento, o PT chegou a convocar Henrique Santillo, que durante toda a ditadura esteve filiado ao MDB e ao PMDB, para combatê-lo. O médico e ex-governador ficou pouco tempo no PT e saiu porque, na década de 1980, era impossível conviver com os xiitas petistas. No entanto, quando o PT assumiu o poder presidencial, Iris Rezende se tornou quase um petista honorário, adaptando-se aos novos tempos. Em 2008, ao disputar a Prefeitura de Goiânia, convocou um petista, Paulo Garcia, para ser o seu vice.
O que se quer mostrar, como faz Raymundo Faoro, é a capacidade que as elites políticas e econômicas têm de se adaptar aos novos tempos, às vezes dinamitando o processo de mudança, ou adaptando-o aos seus próprios ritmos, instintos e ideias.
Governabilidade
Só pessoas mal intencionadas, política ou ideologicamente, podem acreditar que o PT inventou a corrupção no Brasil. A corrupção no País é secular e governos do PSDB, em termos nacionais e regionais, cometeram irregularidades graves. Além do mensalão tucano, em Minas Gerais, há o processo de privatização, que, apesar de alguns livros discutirem o assunto, ainda não está devidamente esclarecido. Historiadores e economistas, mais do que autores que escrevem livros de oportunidade, para vender ou combater, certamente terão muito trabalho para analisar o processo que frequentemente chamam de “privataria”.
Mas o PT é o partido que cresceu à custa, em grande parte, de afirmar e reafirmar que era um combatente visceral da corrupção. No poder, como expôs o processo do mensalão — que levou alguns de seus líderes à cadeia, como José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares — e agora as investigações do petrolão, o processo sistêmico de corrupção na Petrobrás, o PT foi absorvido pelos tentáculos da corrupção histórica.
O PT é um partido importante, moderno, e não dá para colocar na mesma “panela” todos os petistas. Há líderes e militantes honestos. A presidente Dilma Rousseff — assim como o senador Eduardo Suplicy, o ministro José Eduardo Cardozo, o ex-prefeito de Anápolis Antônio Gomide, o deputado Mauro Rubem, o ex-reitor da Universidade Federal de Goiás Edward Madureira, entre outros —, tudo indica, é uma política íntegra e parece realmente incomodada com a corrupção que solapa alguns setores de seu governo. Por que não reage e não escancara as coisas? Porque a vida real não é assim. A petista-chefe admite que há irregularidades, mas não pode dizer como o PT “lambuzou-se”. Por quê?
O início de tudo, possivelmente, é a necessidade da governabilidade.
Impressionada com a queda de Fernando Collor — derrubado não por ser corrupto, e sim por ter tentado romper o pacto histórico com as elites políticas e econômicas, e aparentemente sem criar um novo pacto, exceto com pessoas sem expressão, como PC Farias —, a intelligentsia petista, capitaneada por José Dirceu, formulou uma estratégia perigosa, mas que inicialmente não foi percebida com a devida nitidez: comprar apoio político das elites nacionais no Congresso Nacional e adquirir apoio no campo econômico ao abrir o BNDES, sobretudo mas não só (a Caixa Econômica Federal também está na parada), para as grandes empresas do País.
Assim, com uma oposição inerme (e é por isso que as reportagens da imprensa aparecem mais e, às vezes, são vistas como excessivas. A oposição é menos firme porque seus membros, também integrantes das elites patropis, são investigados e denunciados quando põem a cabeça para fora e criticam o governo), o PT praticamente gerou um certo silêncio em relação ao seu governo e pôde ganhar quatro eleições presidenciais seguidas. Mas não dá para silenciar todos e durante todo o tempo.
O que a cúpula do PT não percebe é que, como sugeriu o filósofo italiano Norberto Bobbio, os fins nem sempre justificam os meios. Porque, no processo, na busca dos fins, os meios podem corrompê-los.
É o que aconteceu. Na busca insensata e apressada pela governabilidade, o PT corrompeu ainda mais o que já era corrupto — o sistema antigo das elites políticas — e, no processo, conspurcou-se. O petismo hegemônico corrompeu-se, ao menos parcialmente.
Porque, exatamente, não se sabe. Mas é possível arriscar uma hipótese no campo subjetivo.
Petistas, repassando tanto dinheiro para os aliados, do PMDB, do PP e, às vezes, do PR, certamente começaram a pensar: por que fortalecê-los, em todo o País, e não fortalecer também o PT com essa dinheirama toda?
Primeiro, petistas começaram a pegar dinheiro para o partido e, em seguida, para si próprios.
O PT corrompeu e se corrompeu. É ruim para a democracia que um partido com sua qualidade tenha se enterrado tanto na lama.
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